« (...) Mas, se a língua é uma ferramenta, ela pode ser também um brinquedo. Afinal, não falamos somente quando temos algo importante a dizer. Aliás, se assim fosse, a nossa existência seria extremamente chata. (...)»
A língua é nosso principal meio de comunicação. Apesar de todos os sistemas já inventados pelo homem para expressar seus pensamentos, nenhum até hoje superou a linguagem verbal em praticidade e eficiência. Desde a Pré-História, temos nos servido dessa valiosíssima ferramenta, e, a rigor, é ela que nos torna humanos, no sentido de sermos a única espécie animal a ter edificado essa coisa chamada “civilização”.
A língua é nosso principal meio de comunicação. Apesar de todos os sistemas já inventados pelo homem para expressar seus pensamentos, nenhum até hoje superou a linguagem verbal em praticidade e eficiência. Desde a Pré-História, temos nos servido dessa valiosíssima ferramenta, e, a rigor, é ela que nos torna humanos, no sentido de sermos a única espécie animal a ter edificado essa coisa chamada “civilização”.
Mas, se a língua é uma ferramenta, ela pode ser também um brinquedo. Afinal, não falamos somente quando temos algo importante a dizer. Aliás, se assim fosse, a nossa existência seria extremamente chata. Felizmente, também temos o direito de jogar conversa fora, fofocar, contar piadas, enfim, usar a língua para falar de coisas «sem importância» (que talvez sejam as mais importantes da vida), isto é, falar de coisas lúdicas. Só que, quando fazemos isso, a linguagem continua sendo, de certa forma, um instrumento, já que a diversão está no assunto e não na mensagem propriamente dita. Porém, há certos casos em que a própria linguagem se torna o objeto do nosso prazer. Nosso deleite está, então, nas palavras em si, em sua sonoridade, na multiplicidade dos sentidos, em seu ritmo, em sua cadência… Brincamos com as palavras como uma criança brinca com uma bola ou um pião: não para atingir um objetivo através do brinquedo, mas o brinquedo é o objetivo, o fim em si. Como diria Rubem Alves, quem brinca não quer ir a lugar nenhum, quem brinca já chegou.
O exemplo mais acabado de como a língua pode se tornar um brinquedo nas mãos de quem sabe brincar é a poesia. Construir um texto que não precise dizer nada em especial e, ao mesmo tempo, seja capaz de dizer tudo, que faça as palavras se encaixarem na métrica como pecinhas de montar, que as faça rimar e ritmar, tudo isso é uma grande e maravilhosa brincadeira! Mas, verdade seja dita, uma brincadeira para poucos. Afinal, ao contrário do que pensam muitos adolescentes apaixonados, poetar exige talento e técnica, não apenas sentimento.
Todavia, existem outras brincadeiras verbais, algumas também fruto do talento e da técnica, mas que, por seu caráter humorístico e anônimo, não chegam a ser tratadas como poesia. São as parlendas, os trocadilhos, os calembures. («O pai ia dar ao filho que estava para nascer o nome de Edison; só que, quando o menino nasceu, seu pai o batizou de Pelé. Os amigos estranharam e perguntaram: ‘Ué, não era pra ser Edison?’ Ao que o pai respondeu: ‘Não, Edison era antes do nascimento.»)
Quando, nos meus tempos de colégio, eu estudava inglês, era comum aplicar nos colegas a “pegadinha” do falso inglês. E não se tratava da "embromation", tão famosa hoje em dia. A pergunta era: «O "o" tem som de "u"?». Indagação absolutamente vernácula e, mais, perfeitamente pertinente às questões de língua inglesa, em que as palavras quase nunca soam como se escrevem. Mas, pronunciada de supetão, parecia ela própria uma frase da língua de Shakespeare, algo como «What and sound you?».
E ainda havia o falso russo «Se nevasse, você usava esqui?» (que só funciona se pronunciado bem rápido) e o famoso falso alemão «Feridas ardem e doem, aftas idem». (Quando ouvi isso pela primeira vez, eu, que na adolescência já sabia um pouco de alemão, interpretei como algo do tipo «Friedes arden deun After sieden».) Essa pegadinha também tem a clássica versão «Feridas doem e ardem, hemorroidas idem». Os erres, as terminações em, os ditongos ói, o encontro ft, tudo soa bastante germânico, não é? Mas é puro besteirol.
E os jogos de palavras em latim? Quem já estudou esse precioso idioma (será que hoje em dia alguém ainda estuda?) com certeza já leu em algum manual de gramática frases como esta: «Ave, ave, aves esse aves?». Esse aparente nonsense verbal quer dizer «Olá, vovô, você deseja comer aves?». E havia ainda frases absolutamente inocentes, mas de sonoridade obscena – para um falante do português, bem entendido –, como «Putas fodere cum porribus nostris?»[1]. Não, nada a ver com prostitutas ou com o ato sexual. Essa frase significa apenas «Pensas cavar com os nossos pauzinhos?».
Por falar em sonoridade obscena, há também a frase inglesa «My pay day was a week ago» («O dia do meu pagamento foi há uma semana»), que, aos ouvidos brasileiros, soa como um horrível cacófato. E há também aquele trocadilho (infame) do rapaz que convidou o amigo a fazer um teste de Cooper, ao que este respondeu: «Não, obrigado, eu já estou com o meu Cooper feito».
E para terminar: o professor de francês (no tempo em que se ensinava essa língua nas escolas) pede ao aluno que traduza para o português a seguinte frase: «Le lion c’est le roi des animaux» («O leão é o rei dos animais»). Ao que o gaiato tasca prontamente a resposta: «O leão, de tanto urrar, desanimou».
[1 N. E. (07/03/2021) – Levantam-se dúvidas acerca da genuinidade latina desta frase. Com efeito, a forma porribus, que exibe a desinência de dativo e ablativo do plural -ibus, da 3.ª e 4.ª declinações latinas, está incorreta, se se atender a que deve corresponder a porrum ou porrus, i , «alho porro», palavra da 2.ª declinação que no dativo e ablativo plural tem a desinência -is. (cf. os dicionários de Gaffiot e o de Charlton T. Lewis e Charles Short). A expressão «cum porribus nostris» constituirá, portanto, uma incorreção, em lugar da forma certa, que será «cum porris nostris», sequência que, além disso, se afigura estranha no contexto dos padrões temáticos dos corpora em língua latina. Justifica-se, portanto, supor que a frase pretensamente latina não seja mais que um artifício criado de propósito para o jogo de palavras brejeiro. Agradece-se ao consultor Luciano Eduardo de Oliveira a chamada de atenção para a incongruência da frase.]
Apontamento do mural de Língua e Tradição no Facebook em 1 de março de 2021.