«(...) [O] Purgatório cristão é o lugar onde se purgam as almas. E o que é purgar? É tornar puro (...)»
Praticamente todas as religiões e tradições míticas consideram a existência de um plano superior à vida terrena, habitado pelos deuses e eventualmente pelas almas bondosas, e um plano inferior, dominado por divindades maléficas, para onde vão as almas dos impuros, dos iníquos e também as dos adeptos de outras religiões.
Essa visão de que há três níveis de existência, da qual os vivos ocupam o intermediário, é uma constante nas mitologias e demais narrativas fundadoras da cultura. Em termos da nossa tradição judaico-cristã, há uma Terra, um Céu e um Inferno (o Cristianismo considera uma quarta instância, o Purgatório).
A palavra céu proveio do latim caelum ou coelum, por sua vez descendente de um hipotético indo-europeu *kailom, gênero neutro do adjetivo *kailos, «íntegro, intacto, puro» e, por extensão, «sagrado». Essa mesma raiz indo-europeia deu o germânico *hailaz, e daí o inglês whole (inteiro) e o alemão heil (são, sadio). Um derivado germânico *hailigaz gerou dentre outras línguas o inglês holy e o alemão heilig, ambos significando «santo, sagrado». E o verbo germânico *hailjan, «tornar íntegro, tornar inteiro» produziu o inglês heal e o alemão heilen, ambos com o sentido de «curar». Ou seja, curar uma pessoa é torná-la íntegra novamente (pois a doença é uma forma de desintegração do organismo). E sagrado é aquilo que está intacto, afinal muitas culturas associam o tocar ao conspurcar, à profanação. Essa é, por sinal, a raiz da metáfora em que a virgindade feminina é um estado de pureza que o contato sexual macula (e daí a visão do sexo como impureza). Aliás, as palavras latinas intactus e integer, que deram respectivamente intacto, inteiro e íntegro em português, provêm da união do prefixo negativo in- com radicais do verbo tangere, «tocar». Logo, intacto, íntegro ou inteiro é aquilo que não foi tocado. E, por conseguinte, céu é, literalmente, o lugar do sagrado, bem como o espaço intocável, o que mostra seu caráter místico já na Pré-História.
As palavras germânicas para céu (dentre as quais heaven em inglês e Himmel em alemão) remetem à raiz indo-europeia *kemen (abóbada), mostrando uma visão mais física e menos espiritual do firmamento.
Já inferno, do latim infernum, «lugar baixo», provém de infer (de «inferior», «ínfimo», etc.), do indo-europeu *ndher, que também resultou no inglês under e no alemão unter (embaixo, sob). O inglês hell e o alemão Hölle remontam ao indo-europeu *k’el, «encobrir», donde o latim celare «esconder» e seu derivado occultus, «oculto».
Quanto a terra, nome do nosso planeta e da matéria de que ele é feito, a origem está na raiz indo-europeia *ters, «seco», de que também provém o latim torrere (torrar, isto é, secar pelo fogo), torridus (tórrido) e tostus (tostado). Da mesma raiz vieram o inglês thirst e o alemão Durst, «sede, secura na boca». Portanto, a terra era originalmente a parte seca da superfície do planeta, por oposição aos oceanos. Por uma extensão de significado, passa a designar todo o planeta e, na visão geocêntrica dos antigos, o centro do Universo, único lugar com vida e, portanto, com seres dotados de alma, a qual, sendo boa, subiria para a abóbada celeste, morada dos deuses, e, sendo má, desceria às profundezas do inferno, no interior da própria Terra – um lugar muito quente, como o provam as lavas vulcânicas que, de quando em vez, emergem à superfície.
Finalmente, o Purgatório cristão é o lugar onde se purgam as almas. E o que é purgar? É tornar puro (o latim purgare provém de *purigare, formado de purus + agere, isto é, «fazer puro, conduzir à pureza»). Não por outra razão, os laxantes também são chamados de purgantes, já que fazem o corpo expelir as impurezas que causam mal-estar.
Artigo publicado no blogue Diário de um Linguista em 2 de fevereiro de 2021.