«(...)a maioria das pessoas não sabe usar [os pronomes o e lhe] no registro culto e acaba metendo os pés pelas mãos.»
«Nunca "lhe" vi», «quero dá-"lo" este livro». O uso dos pronomes o/a e lhe nunca deu tanta confusão como agora.
O emprego dos pronomes pessoais oblíquos em português brasileiro contemporâneo falado (e às vezes também escrito) tem sido um daqueles complexos problemas da nossa língua. É que, em primeiro lugar, temos a tendência a substituir os pronomes átonos o/a/os/as/lhe/lhes pelos tônicos ele/ela/eles/elas: «Eu não vi ele hoje»; «Eu dei o livro pra ele». Em segundo lugar, muitas vezes omitimos o objeto direto quando este é um pronome: «Você viu o Zé? Não vi, não». Em terceiro lugar, o uso do pronome pessoal reto você, que exige os oblíquos o/a/os/as/lhe/lhes, em lugar de tu, acaba criando ambiguidades: «Eu não o conheço!» (não conheço você ou ele?). Por isso, costumamos desfazer a ambiguidade por meio das formas «Não te conheço» (informal) ou «Não lhe conheço« (formal) em oposição a «Não conheço ele».
No exemplo acima, é possível perceber que, ao nos dirigirmos a uma pessoa com quem não temos intimidade, ao mesmo tempo evitamos o uso de te e do pronome objeto direto o/a, utilizando em seu lugar o pronome objeto indireto lhe: «Não lhe conheço!».
Só que agora está surgindo o uso exatamente inverso a esse, isto é, a substituição do pronome objeto indireto lhe pelo direto o/a. Tenho visto cada vez com mais frequência construções do tipo «Eu quero proporcioná-lo a melhor qualidade de vida possível» ou «Recebeu o amigo e o ofereceu um drinque».
Por que isso acontece? Evolução linguística, dirão vocês. Eu, como linguista, não posso negar que isso seja uma inovação que poderá vir a tornar-se uso corrente e predominante. Ou seja, como cientista da língua, não posso deixar de observar o fenômeno como algo natural a que todas as línguas estão sujeitas.
Porém, como falante do português e amante da cultura letrada, tampouco posso deixar de apontar um fato desolador que, em meu diagnóstico, é a causa dessa mutação: nossa péssima educação escolar. Ou seja, o emprego padrão (isto é, normativo) dos pronomes pessoais em português é um tanto complexo, e, particularmente na variedade brasileira, o uso de pronomes de terceira pessoa com função de segunda traz certa ambiguidade que os falantes procuram contornar como podem. Mas, na hora de redigir é que o bicho pega, pois a maioria das pessoas não sabe usar tais pronomes no registro culto e acaba metendo os pés pelas mãos – ou melhor, acaba metendo o/a no lugar de lhe e vice-versa. Fatos como esses certamente não aconteceriam se as pessoas fossem mais bem escolarizadas e se o hábito da leitura fosse mais difundido. Aliás, desconfio que a própria preguiça que o brasileiro em geral tem de ler se deve à má escolarização, pois os livros, jornais e revistas costumam ser redigidos num linguajar bastante distante do usado no dia a dia, o que requer da parte de quem tem pouca afinidade com o léxico e a gramática um grande esforço intelectual. Ou seja, para essas pessoas, ler cansa.
Apontamento do autor no blogue Diário de um Linguista, em 18 de janeiro de 2021, e no Facebook, no dia seguinte.