«Alguém ouviu, no decorrer deste ano, desabafos do género: "Estes bandidos do governo levaram-me o 13.º mês. Filhos duma grande coadopção"?» A atualidade política portuguesa sarcasticamente à lupa nesta crónica do humorista português Ricardo Araújo Pereira, a propósito da votação da “palavra do ano”. In Visão de 12/12/2013.
Os linguistas da Porto Editora organizam, desde 2009, uma votação para eleger a palavra do ano. Trata-se de uma iniciativa, e eu não tenho nada contra iniciativas. Pelo contrário, sou um velho apreciador de iniciativas. No entanto, está em curso um escândalo linguístico, e comigo não contam para o encobrir. A palavra, que é escolhida segundo critérios de relevância e frequência de uso, sairá do seguinte lote de candidatas: bombeiro, coadopção, corrida, grandolada, inconstitucional, irrevogável, papa, piropo, pós-troika e swap.
Imagino que a perplexidade do leitor seja tão grande como a minha. Uma lista das palavras mais utilizadas este ano da qual não consta, por exemplo, o vocábulo gatunos, que credibilidade tem? Para não falar, é claro, nas palavras que estes linguistas, por vil racismo semântico, deixam sistematicamente de fora. Palavras que, na sua maior parte, estão dicionarizadas e têm uma utilização muito mais frequente do que qualquer das finalistas. Alguém ouviu, no decorrer deste ano, desabafos do género: «Estes bandidos do governo levaram-me o 13.º mês. Filhos duma grande coadopção»? Ou: «Já é a segunda talhada que me dão na reforma. Se fossem mas era todos para o piropo»? Com quem convivem estes linguistas?
Claro que algumas palavras escolhidas tiveram bastante utilização. Por exemplo, papa, na frase frequente: «Se usarmos sempre a mesma fralda talvez sobre dinheiro para comprar papa». Ou corrida, na previsão cada vez mais comum: «Esta gente, se não toma cuidado, ainda vai ser corrida à paulada.» Mas certas palavras não foram utilizadas de todo. Irrevogável, por exemplo. Peço desculpa mas não se pode concluir do que aconteceu que a palavra tenha sido utilizada. Se eu disser: «O meu primo Serafim é extremamente galocha», duvido que se possa afirmar, com propriedade, que usei a palavra galocha. Proferir uma palavra independentemente do seu significado não deve ser suficiente para que se diga que a palavra foi utilizada.
Mais: irrevogável é uma palavra que foi popularizada por quem faltou à palavra. A palavra do ano pode ter saído da boca de quem não tem palavra nenhuma – o que, havendo justiça, seria até proibido. Sejamos mais exigentes com a língua, piropo!
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crónica publicada na revista Visão de 13 de dezembro de 2013.