« (...) E não é que dou comigo a gritar "Com! Com, minha besta, com!»"? É. Tornei-me no meu pai? É provável. Eu ria-me com o hábito dele de gritar diante do televisor, corrigindo os dislates dos apresentadores.(...)»
A linguística ensina que é quem usa a língua e a maneira como decide usá-la quem manda nessa língua, para desgosto dos mestres nominais.
Pois eu, no princípio dos anos 70, lembro-me do meu pai fulminar contra a minha recém-adquirida gracinha de dizer “ao nível de” a torto e a direito. Cada vez que atravessávamos uma passagem de nível ele lembrava-se desse meu tique.
Passa entretanto meio século e estou a ouvir rádio no carro. Alguém explica que «há problemas a nível do pessoal, problemas a nível da empresa e ainda problemas a nível da legislação».
E não é que dou comigo a gritar «Com! Com, minha besta, com!»? É. Tornei-me no meu pai? É provável. Eu ria-me com o hábito dele de gritar diante do televisor, corrigindo os dislates dos apresentadores.
O «minha besta»é lamentável, porventura indesculpável nos dias que correm (o pronome possessivo não ajuda), mas era uma herança dos mestres-escola da primeira, impaciente república.
Por azar estava alguém a ouvir-me vociferar. E tive de baixar e adoçar a voz, adoptando um tom maternal e explicativo: «problemas COM o pessoal, problemas COM a empresa, problemas COM a legislação...»
O “a nível” (tal como o Aníbal) não era preciso para nada. Mas lá está: se passaram cinquenta anos e continua a dizer-se, então o melhor é desistir das peneiras e juntar-me aos malfeitores.
“A nível de...” tornar-se-á uma gracinha da nossa língua, para ensinar aos alunos estrangeiros que querem confundir-se com os naturais.
É mais uma gracinha para a mesa do canto. Que difícil que é amá-la.
Crónica disponível no jornal Público do dia 26 de fevereiro de 2020. Segue a norma ortográfica de 1945.