O texto que se segue foi enviado directamente ao Ciberdúvidas para divulgação. Os nossos agradecimentos ao autor.
Quem hoje observa os relatórios das bancas de correção de português depara-se com um fenômeno curioso: a relativa tolerância para com desvios à norma culta da língua. Os chamados «erros de gramática», tão valorizados outrora, parecem faltas menores. São pecados veniais, que por si não levam o aluno ao inferno da reprovação.
Os tópicos em que existe mais complacência são ortografia, concordância, regência e colocação. Não que os corretores ignorem infrações nessas áreas, mas é comum se encontrar a troca de “x” por “ch”, ou de “ç” por “ss”, em redações consideradas modelos.
Eventualmente também aparecem nesses textos construções como «A deliberação sobre as verbas orçamentárias dependem do aval de governantes e políticos» (como se o núcleo do sujeito estivesse no singular); ou «A medida acarretou em graves conseqüências para a comunidade» (uma coisa acarreta outra, e não em outra).
Nem falo da colocação dos pronomes, pois nesse terreno não existe mais norma. Vale o que agrada ao ouvido; se alguém acha “o encontramos” melhor do que “encontramo-lo”, mesmo em início de frase, pode escolher sem remorsos a primeira forma.
Os requisitos para se avaliar um texto hoje são outros. Eles basicamente se resumem aos chamados fatores de textualidade, entre os quais estão a coerência, a coesão, a progressão e a informatividade. E se completam em itens como a argumentação e a fidelidade ao tema.
Ninguém discute que uma falha na concordância é menos grave do que um conectivo mal escolhido. Quem diz que uma pessoa faz amigos “apesar” de ser simpática, e não por causa disso, demonstra falta de clareza ao pensar. E sem clareza não sem pode nem de longe produzir um bom texto.
Mas o problema de se relaxar a vigilância aos preceitos da gramática normativa é que há domínios, fora do âmbito escolar, que tratam com bastante rigor as infrações a tais preceitos. Entre esses domínios, por exemplo, está o que avalia currículos ou perfis de candidatos a empregos na iniciativa privada.
O tipo de texto exigido nesses casos não vai medir a capacidade argumentativa. Nele não se espera a defesa consistente de um ponto de vista. Até mesmo pelo tradicionalismo dos examinadores, o que então se avalia é sobretudo a observância às normas da gramática. Um erro de ortografia, um período mal pontuado, um complemento indevido a determinado verbo pode excluir alguém da seleção.
Se a função da escola é preparar o candidato para a vida e seus desafios, é preciso oferecer a ele as ferramentas necessárias para enfrentá-los e vencê-los. Ensinar a norma gramatical se inclui entre esses apetrechos. É no mínimo uma estratégia objetiva, que ajusta o concorrente a exigências práticas.
Enquanto não se chega a um acordo sobre é ou não “erro”, o que se deve ou não ensinar, o mais prudente é informá-lo do que costumeiramente ainda se exige nas provas de português – mesmo que tal exigência nem sempre se harmonize com orientações da lingüística.