Com 350 mil verbetes, a Academia Brasileira de Letras edita o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. A primeira edição, produzida por Bloch Editores, sob a orientação do Acadêmico Antonio Houaiss, saiu em 1981, ficando fora do mercado mais de 10 anos. Embora ainda não tenhamos o Acordo Ortográfico na unanimidade das sete nações da comunidade lusófona (Brasil, Portugal e Cabo Verde já deram sua aprovação), eliminando elementos quase supérfluos, como é o caso do trema, o certo é que a língua portuguesa cresceu, até mesmo em virtude da introjeção de termos ligados ao desenvolvimento científico e tecnológico ou de muitos estrangeirismos. É o caso de palavras como teleducação (educação à distância), acessar (entrar), deletar (apagar, anular), decasségui (trabalhador brasileiro no Japão), teleconferência (conferência à distância), lincar (ligar), internet, infovia, intranet, etc.
Não há como conter esse crescimento, mesmo que, por vezes, seja ele fruto do que o crítico Wilson Martins chama de “desnacionalização” lingüística ou, para ser mais forte, de um lamentável “lingüicídio”, palavra que, aliás, consta do nosso Vocabulário.
Os franceses reagiram de forma veemente a essa agressão ao seu idioma pelos anglicismos que se tornaram universais, em virtude, sobretudo, da força econômica dos Estados Unidos. A globalização só ajuda nessa expansão. Entre nós, somos vítimas ou beneficiários desse processo. Vítimas, se considerarmos a pureza da língua de Machado de Assis, e beneficiários, se pensarmos na inserção do país na comunidade das nações desenvolvidas. De toda forma, é preciso evitar os exageros imitativos.
O VOLP foi administrado, no Rio, por um Conselho de Lexicografia, constituído pelos especialistas Antônio José Chediak, Sílvio Elia, Evanildo Bechara e Diógenes de Almeida, este último representando a Academia Brasileira de Ciências. Esta edição contém mais de 5 mil palavras que não se encontravam na versão anterior. Assim que o Acordo Ortográfico entrar em vigor, e isso está sendo trabalhado junto ao nosso Ministério das Relações Exteriores, que recebeu orientação firme do presidente Fernando Henrique Cardoso no sentido de ativar os entendimentos, deveremos modificar cerca de 400 palavras hoje constantes do VOLP.
Isso retira do projeto de unidade ortográfica o caráter de catastrofismo que quiseram lhe imputar, em alguns casos por inspiração de pessoas interessadas, em outros “para evitar que o Brasil se torne ainda mais hegemônico”. Na segunda hipótese, uma grande bobagem. A comunidade lusófona é constituída de 200 milhões de pessoas, representando o Brasil cerca de 80% desse total. O que se deve exaltar é o desejo de não impor nada, as nossas autoridades trabalhando pacientemente, com o apoio da ABL, para que a unificação se faça com a adesão de todas as nações concernentes.
Uma introdução
Se atualmente estamos preocupados com o problema da unificação da ortografia, é interessante considerar que o problema talvez se origine há longo tempo. Que o digam as palavras bíblicas registradas no episódio da Torre de Babel...
«1. Ora, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar.
2. Sucedeu que, partindo eles do Oriente, deram com uma planície na terra de Sinear; e habitaram ali.
3. E disseram uns aos outros: Vinde, façamos tijolos, e queimemo-los bem. Os tijolos serviram-lhes de pedra, e o betume, de argamassa.
4. Disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade, e uma torre cujo topo chegue até os céus, e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra.
5. Então, desceu o Senhor para ver a cidade e a torre, que os filhos dos homens edificavam;
6. E disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo: agora não haverá restrição para tudo quanto intentam fazer.
7. Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem do outro.
8. Destarte o Senhor os dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de edificar a cidade.
9. Chamou-se-lhe, por isso, o nome de Babel, porque ali confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra, e dali os dispersou por toda a superfície dela.»
O idioma português
O idioma português é o quinto mais falado do mundo, alcançando 200 milhões de pessoas. A comunidade lusófona é constituída por Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe (os cinco últimos na África) e por Macau, Timor Leste e Goa no Oriente, onde também esteve presente a colonização portuguesa. O especialista Sílvio Elia tinha certeza de que, apesar dos pesares, o português está em expansão no mundo. A elaboração de um vocabulário geral da língua portuguesa é tarefa prioritária da Academia Brasileira de Letras, por intermédio do seu Conselho de Lexicografia.
Também premente é a necessidade de unificação da terminologia científica e técnica, no caso envolvendo grande interesse econômico, dadas as características vigentes de globalização.
A existência de duas ortografias oficiais da língua portuguesa, a lusitana e a brasileira, tem sido considerada como largamente prejudicial à unidade intercontinental do português e para seu prestígio no mundo. Tal situação remonta a 1911, ano em que foi adotada, em Portugal, a primeira grande reforma ortográfica, mas que não foi extensiva ao Brasil.
Por iniciativa da Academia Brasileira de Letras, em consonância com a Academia das Ciências de Lisboa, com o objetivo de se minimizarem os inconvenientes desta situação, foi aprovado em 1931 o primeiro acordo ortográfico entre Portugal e o Brasil. Todavia, por motivos que não importa agora mencionar, o acordo não produziu, afinal, a tão desejada unificação dos dois sistemas ortográficos, fato que levou, mais tarde, à convenção ortográfica de 1943. Diante das divergências persistentes nos Vocabulários publicados pelas duas Academias, que evidenciavam os parcos resultados práticos do acordo de 1943, realizou-se em Lisboa, em 1945, novo encontro entre os representantes daquelas duas agremiações, o que levou à chamada Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945. Mais uma vez, entretanto, o acordo não produziu os efeitos desejados, adotado em Portugal, mas não no Brasil.
No Brasil, em 1971, e em Portugal, em 1973, foram promulgadas leis que reduziram substancialmente as divergências ortográficas entre os dois países. Apesar disso, ainda restavam divergências sérias entre os dois sistemas ortográficos.
Orientadas no sentido de reduzir tais divergências, a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras elaboraram, em 1975, novo projeto de acordo que não foi, no entanto, aprovado oficialmente por motivos de ordem política, sobretudo em Portugal. Nesse contexto surge o encontro do Rio de Janeiro, em 1986, no qual se congregaram, pela primeira vez, na história da língua portuguesa, representantes não apenas de Portugal e do Brasil, mas também dos cinco novos países africanos de língua portuguesa, emergidos da descolonização portuguesa. E aqui vale fazer um parêntese, pois implica falar em cidadania.
A língua portuguesa e a cidadania
Há muitas interpretações para o termo cidadania, conforme a ótica adotada.
Historicamente, na Grécia Antiga, o cidadão integrava-se à polis, isto é, incluía-se entre aqueles que a dirigiam. Os metecos e os escravos não eram cidadãos.
Só os nascidos em Roma eram considerados cidadãos. Os demais povos, apesar de possuidores também de cultura própria, eram bárbaros, aos quais ironicamente estava destinado, no futuro, o domínio do império, estilhaçando o que fora conquistado pelas armas. No século XVIII, o conceito de cidadania foi introduzido pelos revolucionários franceses de 1789, inspirados pelas teses iluministas. Todos aqueles que se opunham aos privilégios da aristocracia eram cidadãos e gozavam, pelo menos teoricamente, dos direitos de liberdade, igualdade e fraternidade.
Mais ou menos consolidados os princípios da Revolução, as atenções voltaram-se para a educação: o ensino obrigatório, o aperfeiçoamento das escolas normais e a adesão, às vezes forçada, dos professores aos ideais republicanos, deram novo sentido à palavra cidadania. Esta passava, necessariamente, pelos bancos escolares, dando coesão ao país, ameaçado por forças externas.
Há exemplos históricos de imposição da língua do conquistador para derrubar o orgulho nativo do conquistado, sem que o fato revertesse sempre em aquisição da cidadania do mais forte. O conquistado ficava reduzido à oralidade e acabava por perder sua autenticidade, sem adquirir outra.
A classe dita culta mostra-se displicente em relação à língua nacional e a indigência vocabular tomou conta da juventude e dos não tão jovens assim, quase como se aqueles se orgulhassem da sua própria ignorância e estes quisessem voltar no tempo.
Novas formas de regência verbal são adotadas desde que um ex-candidato a um alto cargo as introduziu com galhardia. Também, por influência do economês, todos oportunizam, absolutizam, otimizam, a nível disto e daquilo e colocam perguntas e dúvidas, enquanto alunos...
Os próprios jornais, que deveriam ser um modelo de correção por causa da sua circulação, não constituem exceção. Aliás, do ponto de vista vernacular estão errando como nunca.
Até há pouco, a chamada matéria Comunicação e Expressão abrigou todo e qualquer conhecimento, menos o da Língua Portuguesa em seu sentido estrito.
Para que estudar verbos irregulares, se é mais fácil dizer interviu ou manteu ou, ainda, descobrir outras utilidades para o aliás e o inclusive? E o triste houveram?
É de lamentar que os cursos de Comunicação Social discutam Mc Luhan, Umberto Eco, Derrida, Adorno, Sapir e outros papas da Comunicação, da Semiótica e da Filosofia e os comunicólogos sejam socorridos pelo idiota da objetividade, como chamava Nelson Rodrigues ao copidesque.
Alguns brasileiros tanto não suportam seu idioma que os cursos de Pedagogia e de Direito se omitem no estudo da Língua Portuguesa. Esses cursos, mais que os outros, deveriam ser os primeiros a cultivá-la, senão por sentido cívico, por força do seu dever e da sua função junto à sociedade. A partir de 1998, espera-se que as coisas melhorem, com a introdução de Códigos e Linguagens em nossos currículos.
Hoje, no Brasil, há boutiques e não lojas; multiplicam-se os nomes fantasia em inglês e francês, como Design, Fast Man, Déjà Vu, Crazy Machine, Company. As lojas para a classe alta ostentam o seu pedigree em palavras estrangeiras e preços altos. As fachadas dos prédios sofisticados não se contentam com uma numeração honesta e conforme as posturas municipais. É preciso que elas se distingam de outras por inspirações estrangeiras.
A dublagem de filmes, por exemplo, por displicência do roteirista, é um acúmulo de frases sem sentido e sem conexão com o que se vê na tela, além de dubladores com dicção péssima, reproduzindo uma linguagem incorreta.
É claro que seria mais agradável para quem entende inglês ou francês ouvir a voz original de Richard Burton, Ingrid Bergman ou Simone Signoret, mas a dublagem corresponde a uma necessidade social, não só em relação ao mercado de trabalho, mas também à possibilidade de proporcionar entretenimento a um maior número de pessoas.
Por outro lado, acreditamos que houve em nosso país um fenômeno social que, exagerando um pouco, fez mais pelo Brasil em termos de cidadania do que a escola.
Estamos nos referindo ao futebol, que, por ocasião do seu aparecimento, aqui, exigia que todos os jogadores falassem em inglês, ou, como dizia Mário Filho, gritassem em inglês.
Cabia ao capitão do time possuir o maior repertório e usar, se necessário, o man on you. As 11 posições do time eram as da terminologia original, e o árbitro, o referee.
Os puristas da língua propunham o termo balípodo para substituir football, mas o povo se encarregou de democratizá-lo. Aos poucos, o match foi substituído por jogo, ground por campo e as posições transformaram-se em centro, lateral, goleiro, zagueiro, etc. Tudo isso sem a intervenção da língua culta.
As posições convencionais, entendidas por todos, contribuíram, como acontece ainda, para que uma aglomeração de pessoas se transformasse, temporariamente, em multidão, acionada pelos mesmos objetivos.
Os chamados anglicismos estão, entre nós, nacionalizados e incorporados ao dicionário por transformação semântica ou morfológica: bife, clube, bonde, dólar, deletar, iate, teste, não agridem mais a língua nacional.
Também não se pode ignorar a experiência tecnológica e científica, as relações comerciais, políticas e diplomáticas, que não prescindem de expressões como blue ship, spread, primerate, bit, software e muitas outras. Essas expressões pioneiras, expressivas e sintéticas, sem similares ainda em nossa língua, não chegam a arranhá-la porque constituem um jargão especializado que não interessa à população em geral, mais preocupada com o salário e os preços do arroz e do feijão...
http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=2454&sid=19
*Academia Brasileira de Letras (ABL), rubrica "Nossa Língua". Texto parcial relativo à 3.ª edição (2003).