« [...] A escolha da palavra "estudo" no título reivindica para a publicação da RFM seriedade e cientificidade, que estão bem longe dos seus objetivos. [...]»
Surgiu (...) no Facebook da [rádio] RFM uma publicação intitulada "Estudo indica que a palavra mãe deve ser substituída por «pessoa lactante» para criar uma linguagem neutra», que recebeu 2900 reações negativas, 2400 comentários (muitos insultuosos) e 410 partilhas, sendo repartilhada muito mais vezes. Com um título destes, seria de prever: a estupefação e a rejeição do conteúdo advêm, desde logo, do absurdo de se pretender substituir a palavra mãe, primordial e carregada de sentidos e afetos, por «pessoa lactante», expressão assética, fria e não significante.
Se a principal função do título é captar a atenção para a publicação que encabeça, poderíamos admitir que este cumpriu a sua função. Porém, mais do que a leitura da publicação, o que ele desencadeou foi uma reação impulsiva e desproporcionada (as pessoas leem apenas os títulos e reagem) contra a linguagem neutra, inclusiva, dita «politicamente correta», que algumas forças tanto atacam, principalmente para desviar as atenções das muitas iniquidades que defendem (de religião, etnia, sexo, estrato social, etc).
A escolha da palavra estudo no título reivindica para a publicação da RFM seriedade e cientificidade, que estão bem longe dos seus objetivos. Li o estudo (da revista Brestfeeding [amamentação] Medicine), que afinal não é um "estudo" mas sim uma "declaração" (statement) da Academy of Brestfeeding Medicine – ABM, uma ONG sediada em Chicago. Como declaração que é, a da ABM não visa descrever objetivamente o resultado de nenhum estudo, mas antes tomar posição fundamentada, defender, promover determinados princípios de atuação. Chamar-lhe, pois, "estudo" é uma imperdoável falácia.
A declaração da ABM começa por referir que linguagem é poder e que, como ela influencia o pensamento e o comportamento, é preciso evitar que o seu uso inadequado gere iniquidades de género no acesso à saúde. O texto refere-se à produção de materiais informativos e de divulgação, escritos, em inglês, e visa complementar o Protocolo Clínico # 33: Cuidados no aleitamento para pessoas LGBTIQ+ (Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender, Queer, Questioning, Plus), lembrando que nem todas as pessoas que dão à luz se identificam como mulheres. A declaração avalia a escolha de uma linguagem mais ou menos inclusiva e mostra que essa escolha deve ser fundamentada e ter em conta, entre outros, as preferências das pessoas visadas e as características culturais e legais das sociedades a que se destinam. Realça que a morfossintaxe (e.g., marcação do género e existência ou não de género neutro) varia de língua para língua e que, como tal, o que é preconizado a partir da língua inglesa não pode ser "transplantado" acriticamente para outras línguas e outras realidades.
A publicação da RFM, claro, não reflete nenhuma das condicionantes nem preocupações plasmadas na declaração original, mais não sendo do que uma divagação falaciosa sobre leituras (propositadamente?) mal feitas de textos "sérios".
Bem sei que ninguém em seu perfeito juízo procura informação objetiva e séria no Facebook da RFM , até porque esta estação de rádio se assume como a face divertida e ligeira da Rádio Renascença; contudo, não podemos ignorar o efeito replicador e "infodémico" das redes sociais. Além disso, a publicação em foco é ainda mais perversa, porque vem disfarçada de circunspeção, objetividade e probidade, que afinal não tem, nem pretende ter.
Que propósitos visa este tipo de publicações? A quem serve? Que cada um analise os dados e encontre respostas.
Crónica da linguista e prfessora universitária Margarita Correia, publicada no Diário de Notícias em 7 de fevereiro de 2022.