«(...( Trago alguns excertos de escritores clássicos que, aqui e ali, reputaram conveniente fazer uso de «o mesmo» naquela repudiada função pronominal substantiva (...).»
Desde os tempos da escola, ouvimos que «o mesmo» não pode ser usado no sentido de ele.
«Está errado!!!!», repete incisivamente a professora de Português. Nisso, aprendemos que, em vez de escrever «Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo está parado neste andar», deveríamos dizer: «Verifique se ele (ou este) está parado neste andar.»
Então, contrariando a expressão que nos parece natural, criamos ao longo da vida uma fobia (induzida mediante repetição, eu diria) contra «o mesmo».
Mas será que o recurso é tão condenável assim?
1. Algumas condenações
O gramático Napoleão Mendes de Almeida, um tanto exagerado em suas reprimendas, manifesta-se:
«Há um emprego condenável do demonstrativo mesmo […]. Talvez por temor de, no emprego do pronome ela, formar palavras grotescas, como “boca dela”, ou para evitar a repetição desse pronome, costumam certos autores, infalivelmente, substituí-lo por "a mesma”, “da mesma”, “para a mesma”, “com a mesma”, substituição verdadeiramente ridícula, que só logra atestar fraqueza de estilo, falta de colorido e de recursos sintáticos.»
Já [Domingos Paschoal] Cegalla, menos colérico, mas ainda concordando, ensina:
«Evite-se empregar “mesmo” como substituto de um pronome, em frases do tipo: “Não suportando mais a dor, procurei o dentista, mas o mesmo tinha viajado.” […] No primeiro exemplo, fica melhor: mas ele tinha viajado.»
E José Maria da Costa, fundamentado na lição de outros estudiosos (como Edmundo Dantes Nascimento, Geraldo Amaral Arruda e Júlio Nogueira), afirma:
«Quanto à sintaxe, constitui erro frequente usar tal pronome demonstrativo sem acompanhamento de substantivo, não se podendo olvidar que “mesmo” não tem por função substituir “ele” ou “este”.»
2. Contra os contrários
Não obstante, muito curioso é o parecer do sempre razoável Evanildo Bechara:
«Alguns estudiosos, por mera escolha pessoal, têm-se insurgido contra o emprego anafórico do demonstrativo “mesmo”, substantivado pelo artigo, precedido ou não de preposição, para referir-se a palavra ou declaração expressa anteriormente. Não apresentam, entretanto, as razões da crítica.»
3. A função pronominal – e por que condenar?
Enquanto pronome, «o mesmo» apresenta funções de reforço de identidade, de reafirmação:
«Deus é o mesmo ontem, hoje e eternamente.»
«Você me odeia? Pois eu digo-lhe o mesmo!»
«Os rapazes descobriram que tinham a mesma namorada.»
«Quer lutemos, quer nos rendamos, dá na mesma.»
Ora, o uso pronominal generalizado de «o mesmo» não só nos parece natural, já que tantos assim o reproduzem, mas também conta com o respaldo de grandes escritores que não viram mal algum em fazer como outros tantos condenam.
Evidentemente, «ser natural» não é motivo bastante para reconhecer, na norma, uma expressão. Sabemos que o processo gramatical é complexo, demanda extensa pesquisa, análise de múltiplas fontes e autores etc. No entanto, também não é pouca coisa o fato de escritores consagrados terem, em diferentes épocas, empregado a construção, tampouco é irrelevante a posição de um gramático de peso que afirma não ter encontrado razões suficientes para o rechaço.
O que quero dizer é o seguinte: ainda que «o mesmo», no parecer de boa parte dos gramáticos – e de professores e alunos que os reproduzem –, não seja reconhecido como um recurso válido para retomar termos no sentido substantivo de ele ou este, seria ainda assim um recurso tão execrável, um erro tão crasso?
Será justa a crítica de Napoleão Mendes de Almeida, para quem os que se valem de «o mesmo» estão a empregar uma substituição «ridícula», atestando «fraqueza de estilo», «falta de colorido e de recursos sintáticos»? Ou a alegação de José Maria da Costa, para quem houve «cochilo» em Machado de Assis, que teria deixado escapar o erro? Se assim é, faltou estilo, ou vocabulário, ou até mesmo revisão a Machado, a José de Alencar, a Euclides da Cunha? Quem já leu Os Sertões sabe que a última coisa de que Euclides careceria é a palavra perfeita para o contexto.
É verdade que todo exagero deve ser combatido, desestimulado. Todavia, se abusam de “o mesmo”, a solução não necessariamente é condená-lo como fraco recurso: da mesma forma, abusa-se dos pronomes pessoais retos, mas ninguém diz que devam ser completamente eliminados do texto.
Para finalizar este que é mais um convite à reflexão, trago alguns excertos de escritores clássicos que, aqui e ali, reputaram conveniente fazer uso de «o mesmo» naquela repudiada função pronominal substantiva. Não são escritores que o empregam a torto e a direto – mas também não deixaram de fazê-lo nas poucas ocasiões em que o tomaram por bem.
4. Na literatura
«Todos deviam ter a faculdade de emitir moeda e só a confiança no emissor devia regular o recebimento DA MESMA.» (Lima Barreto)
«…e precisa a lei que os atestados de competência literária dos candidatos possam suprir-se por quaisquer publicações importantes, DOS MESMOS, sobre economia política, ou direito internacional.» (Fialho de Almeida)
«Apesar da sua rudeza e ignorância quase completa, esmerava-se o coronel José Aires na educação de seus filhos, e tinha em casa um preceptor que se desvelava na educação DOS MESMOS.» (Joaquim Norberto de Souza Silva)
«Os diretores presos tiveram habeas-corpus. Apareceu um relatório contra OS MESMOS, e contra outros, mas apareceu também a contestação…» (Machado de Assis)
«Senhor de todos os títulos de dívida de Leôncio, isto é, de toda a sua fortuna, Álvaro partiu para Campos a fim de promover por sua conta a execução dos bens DO MESMO, e munido de todos os papéis e documentos…» (Bernardo Guimarães)
«Destas a principal é, evidentemente, a que se passa entre um cidadão, de quem a sacra família recebe gasalhado e o criado DO MESMO.» (Júlio Dinis)
«Este sumiço e ainda mais a circunstância de não encontrar-se o rasto da rês, o que fazia presumir a morte DA MESMA, eram sem dúvida a causa da tristeza da donzela…» (José de Alencar)
«Em 1839, o Conde de Farrobo que era então presidente da Comissão para a edificação do Teatro, o Conselheiro Rodrigo da Fonseca Magalhães e eu, que éramos vogais DA MESMA, pedimos audiência de Suas Majestades…» (Almeida Garrett)
«Continuam as notícias discordantes e os boatos desencontrados sobre a situação, afirmando uns a próxima rendição do arraial dos jagunços, garantindo outros tenaz resistência por parte DOS MESMOS, declarando…»(Euclides da Cunha)
Apontamento do escritor e revisor brasileiro Gabriel Lago, transcrito com a devida vénia, do mural Língua e Tradição (Facebook, 23/02/2024).