«[...] [J]acobinos e positivistas tentaram introduzir o tratamento de cidadão para todos os brasileiros no intento de acabar com as hierarquias monárquicas compostas de títulos de nobreza e honoríficos [...].»
Os brasileiros sempre tiveram problemas com a palavra cidadão, ou com qualquer outra que indique igualdade civil e ausência de hierarquias sociais, como sua irmã gêmea, república. Roberto DaMatta já nos mostrou isso.
O vírus da cidadania chegou a nossas plagas vindo da França revolucionária, do assustador Aux armes, citoyens! Um panfleto manuscrito de 1821, exposto nas ruas de Salvador, não deixava por menos: «Às armas, cidadãos! […] Se à força da razão os reis não cedem/ das armas ao poder cedam os reis.» Mas estávamos vacinados pela tradição monárquica ibérica. A palavra entrou para nosso vocabulário liberal domesticada em seu potencial nivelador.
Nova tentativa de retomá-la em seu sentido revolucionário foi feita logo após a Proclamação da República por alguns republicanos jacobinos e positivistas. Silva Jardim à frente, e novamente inspirados na Revolução de 14 de julho, eles saíam cantando a Marselhesa pelas ruas do Rio de Janeiro, para desespero do representante francês, que não queria atritar-se com o Governo brasileiro, nem desagradar a seus compatriotas.
Vitorioso o golpe, jacobinos e positivistas tentaram introduzir o tratamento de cidadão para todos os brasileiros no intento de acabar com as hierarquias monárquicas compostas de títulos de nobreza e honoríficos, patentes da Guarda Nacional. A regra de tratamento passava a ser cidadão-presidente, cidadão-deputado, cidadão-barbeiro, e assim por diante.
O destino do esforço pode ser acompanhado na correspondência enviada a Rui Barbosa quando ministro da Fazenda entre 1889 e 1891, quase toda ela dedicada a pedidos de favores, sobretudo empregos públicos. Era óbvia a dificuldade dos missivistas em seguir a nova regra republicana. Em mais de mil cartas, só duas, uma de João Ribeiro, a outra de Silva Jardim, se enquadraram. Os dois mesmos, em outras cartas, e todo o resto temperaram o cidadão no mínimo com um cidadão-doutor. Havia variantes como “cidadão-conselheiro” (misturando o título monárquico com o republicano), “cidadão- general” (título que foi dado a Rui pela própria República, que o constrangia). Alguns missivistas extrapolaram: “Cidadão-general-Dr.”, ou “Exmo.-Cidadão-Conselheiro”. A maior dificuldade dos missivistas era não usar a palavra doutor. Até nos quartéis, era Dr. General para cá, Dr. Tenente para lá.
Mais tarde, já depois da Revolução de 1930, houve nova tentativa de “cidadanizar” o tratamento. Consta que o general Manuel Rabelo, um positivista ortodoxo, como Rondon, quando interventor em São Paulo, promulgou um decreto tornando obrigatório o tratamento de cidadão para todos. Deram-lhe o apelido de “Cidadão-mendigo”. Hoje, cidadão é quase xingamento, como se viu em episódio recente no Rio de Janeiro, protagonizado por um Sr. Dr. Engenheiro. A solução, como sugeriu Capistrano de Abreu, talvez seja dar a todo brasileiro, já na certidão de nascimento, o título de doutor. Seríamos uma República de Doutores, única no mundo.
Artigo publicado em 26 de julho no jornal brasileiro O Globo (também disponível na página da Fundação Astrogildo Pereira).