«Pois bem, uma vez que foi em português – e não em hebraico, castelhano ou neerlandês – que Espinosa foi enhermado (neologismo hebraico-português: “posto em herem”, banido, excomungado) da congregação Talmud Torah (Aprendizagem da Lei) da comunidade judaico-portuguesa de Amesterdão, alguns estudiosos da sua obra têm-se debatido, de há mais de cem anos a esta parte, com a questão de saber qual a língua falada por Espinosa no seu dia-a-dia nos diferentes locais dos Países Baixos em que o filósofo viveu.»
Numa altura em que os ânimos e as paixões mais tristes e mesquinhas desfiguram uma interpretação e uma avaliação serena da lei que permite aos descendentes de judeus sefarditas a obtenção da nacionalidade portuguesa, ocorreu-me que talvez não fosse uma má ideia dar conhecer aos leitores do Público quem foi o filósofo sefardita Bento de Espinosa e em que língua falava e pensava aquele de quem um dia Albert Einstein, perguntado se acreditava em Deus, respondeu: «Acredito no Deus de Espinosa, que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa pelo destino e pelas acções dos homens.»
Com esta história não se pretende atiçar os maus azeites (palavra de origem hebraica) dos leitores.
Pois bem, uma vez que foi em português – e não em hebraico, castelhano ou neerlandês – que Espinosa foi enhermado (neologismo hebraico-português: “posto em herem”, banido, excomungado) da congregação Talmud Torah (Aprendizagem da Lei) da comunidade judaico-portuguesa de Amesterdão, alguns estudiosos da sua obra têm-se debatido, de há mais de cem anos a esta parte, com a questão de saber qual a língua falada por Espinosa no seu dia-a-dia nos diferentes locais dos Países Baixos em que o filósofo viveu.
Hoje em dia é bem claro que essa língua era o português. Já em 1930, aquele que porventura foi o maior filósofo português do século XX, Joaquim de Carvalho, hoje incompreensivelmente esquecido, publicou na Revista da Universidade de Coimbra, vol. XI, um documentado e escrupuloso estudo intitulado Sobre o lugar de origem dos antepassados de Baruch de Espinosa. Aqui nos diz o autor que «a língua familiar da puerícia e adolescência de Espinosa foi o português». Efectivamente, como também no-lo recorda António Borges Coelho, «foram portugueses os pais, os avós e os tetravós de Espinosa. A sua língua materna foi a portuguesa. Falavam-na o pai, a mãe, a madrasta. Era também a língua usada pelos judeus da “Nação Portuguesa” de Amesterdão em casa, na rua, nos notários e nos documentos internos. É portuguesa, e não espanhola ou holandesa, a sua assinatura autógrafa: ‘Bento Despinosa'».
Coincidindo no tempo com a implantação da República, e no regresso da sua missão científica à Holanda, da qual foi incumbido por mandato expresso da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Joaquim Mendes dos Remédios escreve, também ele, o seguinte: «É indubitável que a língua portuguesa perdurou em Amesterdão durante largo período não só como a língua usada pelos literatos e homens cultos, mas ainda no seio das famílias como a língua própria e habitual. Nos livros, como nos seus cartões para não importa que convite de festa ou de cerimónia, nas inscrições epigráficas dos seus monumentos tumulares, a língua que empregavam era, de facto, a portuguesa.» De seguida, Mendes dos Remédios empenha-se em mostrar ao leitor as cópias que efectuou das inscrições tumulares dos judeus portugueses no cemitério judaico-português de Ouderkerk, nos arredores de Amesterdão, exemplo único no mundo de arte funerária judaica, dando igualmente a conhecer um valiosíssimo catálogo de escritos em português, hoje disponíveis online no site da Biblioteca Ets Haim (Livraria Montezinos) da Sinagoga Portuguesa de Amesterdão. Neste seu trabalho pioneiro, Mendes dos Remédios dava também a conhecer ao público interessado as Ascamoth [Regulamentos] pelas quais será governado o Kahal Kados [Santa Congregação] de Talmud Tora de Amesterdão, que Deus aumente, recopiladas e recolhidas de todas as que havia na Nação (1638), igualmente redigidas em português.
Uma outra indicação de que a língua falada por Espinosa era o português pode ser detectada na sua correspondência. Em carta de 5 de Janeiro de 1665 dirigida a Willem van Blijenbergh e redigida em neerlandês, Espinosa termina a sua longa missiva lamentando-se e pedindo desculpa ao seu correspondente por não se saber exprimir convenientemente na língua materna de Blijenbergh: «Muito gostaria de lhe poder escrever na língua em que fui criado, porque talvez nela pudesse expressar melhor os meus pensamentos.»
Em 1921, Carl Gebhardt, fundador da Societas Spinozana, da revista Chronicon Spinozanum e editor alemão das Obras de Espinosa, deu à estampa um artigo intitulado O nome Espinosa, no qual tece algumas considerações a respeito daquela que terá sido a língua materna do autor da Ética. Após analisar as 11 assinaturas que o filósofo escreveu pelo seu próprio punho, legadas à posteridade em diferentes documentos, e depois de chegar à conclusão de que Bento Despiñoza seria a forma primitiva portuguesa do nome do filósofo, Gebhardt discorre de maneira breve, mas resoluta, sobre a língua em que Espinosa presumivelmente pensava: «Originalmente, usava o nome próprio Bento (Baruch era a forma sacra, que naturalmente foi empregada na fórmula da excomunhão). A escrita original do nome do marrano português Espinosa diz-se, por esse motivo, Bento Despiñosa. (Como espanhol, chamar-se-ia Benito de Espinosa). Ainda em 1662, ou seja, seis anos após a sua expulsão da sinagoga, Espinosa pronunciava o seu nome em português, apesar da latinização do seu nome próprio de Bento para Benedictus. Dessa forma, decide-se ao mesmo tempo a não tão trivial questão da língua nativa de Espinosa, surgida a partir da sua observação na carta a Blijenbergh.»
E Gebhardt, definitivo, remata o seu lacónico texto: «Com a expressão "na língua em que fui criado", Espinosa, que em holandês não se sentia completamente seguro (ele dispunha de um escritor de cartas em holandês), queria apenas apontar que o holandês não era a sua língua materna, com o intuito de desculpar eventuais erros de linguagem. A sua língua materna era o português, a língua que se falava na Vidigueira, o lugar de nascimento de seu pai, Miguel Despiñoza, que de lá, via Nantes, chegou a Amesterdam. Quando ele meditava, servia-se, ao longo de toda a sua vida, da língua portuguesa.»
Nec per somnium cogitant
O leitor atente agora, a partir de uma nota de rodapé de Joaquim de Carvalho, na anómala locução latina nec per somnium cogitant / nem por sonhos lhe passa pela cabeça, expressão que aparece na Ética, no Tratado Teológico-Político e numa carta de Espinosa (Ep. XXXII) a Henry Oldenburg. Numa fina observação filológica, Joaquim de Carvalho, interrogando-se sobre a razão por que esta construção latina aparecia na mente de Espinosa – de um modo natural e, por assim dizer, automático – em ligação com os termos videre e cogitare, conclui que o filósofo a deverá ter usado de modo quase inconsciente, como uma expressão idiomática ou como uma frase feita em português, que lhe seria familiar pela conversação oral: «Nesta ordem de ideias, admitimos que ela corresponda ao modismo da nossa linguagem popular: nem por sonho lhe passa pela cabeça. Nem por sonhos, era locução em uso em Portugal no século XVII, como mostra a Feira dos Anexins, de D. Francisco Manuel de Melo, podendo supor-se que corria familiarmente entre os judeus portugueses que se estabeleceram em Amesterdão. Se este modo de ver é exacto, ele constitui um facto a juntar aos que indicam que Espinosa pensava em português, como língua nativa, que aprendera com o pai e a madrasta, e praticara fora de casa no seminário Ets Haim e na convivência com alguns membros da comunidade israelita de Amesterdão.»
A tal taal
Finalmente, o último depoimento em favor da tese – na verdade, um segredo de trazer por casa – segundo a qual o português era a língua usada na família de Espinosa pertence a Steven Nadler, que na excelente biografia que consagrou ao filósofo dedicou algumas palavras a este assunto: «A língua que se falava na casa de Espinosa, era, evidentemente, o português. Os homens, pelo menos, sabiam também o castelhano, a língua literária. E todos rezavam em hebraico. Exigia-se na comunidade que todos os rapazes estudassem a ‘língua sagrada’ na escola; a geração dos mais velhos, educados em ambiente católico, possuía apenas uma familiaridade fonética com a língua. A maioria dos membros da família aprendia também a ler e a falar um pouco o holandês, necessário para frequentarem os mercados e para permitir a comunicação e os documentos relacionados com os negócios, embora pelo menos um dos notários que os comerciantes judeus utilizavam mais vezes tivesse um assessor que falava português. […] Mas se Miguel d’Espinosa, pai do filósofo, e seus filhos precisavam de ser poliglotas para tratar dos seus assuntos sagrados e mundanos, mesmo assim, tal como a maior parte das famílias da comunidade, a língua que utilizavam na rua e em casa era o português. Mesmo quando mais velho, Espinosa, embora falasse fluentemente o latim e tivesse bons conhecimentos do hebraico, sentia-se mais à vontade em português do que em qualquer outra língua. Em 1665, escrevendo a Willem van Blijenbergh em holandês, Espinosa termina afirmando: ‘gostaria mais de escrever na língua em que fui educado [de taal, waar mee ik op gebrocht ben]; talvez conseguisse expressar melhor o meu pensamento'; em seguida, pede a Blijenbergh que corrija ele próprio os erros em holandês. É evidente que a taal a que está a referir-se aqui é o português, e não o latim, como alguns estudiosos supuseram.»
Concluo, fazendo apenas notar que a “língua” na qual Espinosa, o filósofo sefardita, falava e pensava – tivesse ele querido dizer na carta a Blijenbergh, no seu mau neerlandês, «gostaria mais de escrever na língua em que fui criado» ou «gostaria mais de escrever na língua em que fui educado» –, essa língua era a língua da qual um dia Samuel Usque, autor de uma das obras-primas da língua e literaturas portuguesas, Consolação às Tribulações de Israel, disse: «Desconveniente era fugir da língua que mamei e buscar outra prestada para falar aos meus naturais”. Estou inteiramente persuadido de que Espinosa não fugiria da “língua que mamou.» E se acaso Blijenbergh soubesse ler o português, talvez Espinosa lhe pudesse ter respondido em português com estas palavras de Samuel Usque.
Para instrução e conhecimento dos portugueses que não são ingratos e que amam a longa e rica história da sua língua, fica a passagem inteira que, estou convicto, não necessita de ser “actualizada” para o português do Brasil:
“Alguns señores quiserom dizer antes que soubesem minha razam, que fora milhor aver cõposto em lingoa castelhana, mas eu creo que nisso nam errey, por que sendo o meu principal yntento falar cõ Portugheses, e representando a memoria deste nosso desterro buscarlhe per muitos meos e longo rodeo, algum aliuio aos trabalhos que nelle passamos, desconveniente era fugir da língua que mamey e buscar outra prestada pera falar aos meus naturais; E dado caso que a volta ouve muitos do desterro de Castela, e os meus passados daly ajam sido, mais razão parece que tenha agora conta com o presente e mayor cantidade”.