Não serão tão decisivos como acertos na economia ou erros na condução das políticas sociais mas os cuidados gramaticais no Brasil importam. E muito.
A última moda é discutir a «mesóclise de Temer», mas comecemos pelo início.
E o início é o fim do governo do intelectual Fernando Henrique Cardoso (FHC), do PSDB, e consequente subida ao Planalto do metalúrgico Lula da Silva, do PT.
Ao contrário de outros países onde os políticos mais à esquerda não são necessariamente menos cultos do que os mais à direita – em muitos casos sucede até o contrário – no Brasil o estereótipo colou: afinal, FHC, ícone da social-democracia, candidato preferido dos donos do capital e de outras elites, tem um discurso coordenado, eloquente, melífluo; já Lula, herói do proletariado, nascido no sofrido nordeste e migrado para o caos suburbano de São Paulo, erra plurais – «os deputado», «os ministro» – e não só.
Entre as críticas mais comuns ao seu consulado estão o «não sabe falar», «é uma vergonha internacional», «de inglês, nem yes, nem no». Na internet, fizeram-se compilações de tropeços; nos jornais, top-10 de calinadas e por aí adiante.
Só que, carismático, o ex-operário fez das fraquezas força e passou a cunhar frases com apelo popular como «salário mínimo nunca é o ideal porque é mínimo», «eu sei como é greve da fome, dá uma fome danada» ou «se Jesus fosse presidente do Brasil até com Judas se aliava».
FHC, por seu lado, passa com voz de veludo por programas de TV brasileiros e até estrangeiros – como numa recente entrevista à Al-Jazeera, onde se engasgou num inglês perfeito, com as perguntas duríssimas de um jornalista muito diferente dos representantes da imprensa local que por norma lhe estendem uma passadeira vermelha – mas não emociona as massas com a mesma eficácia do sucessor.
A Lula, seguiu-se Dilma Rousseff, também do PT, que tem curso superior, é leitora voraz, aproveitou cada viagem internacional para visitar museus driblando a própria segurança, mas é nota zero em dom de palavra. Está a léguas da fluência de FHC e parece deslocada ao ensaiar tiradas "à Lula" – como quando saudou «a mandioca, uma das maiores conquistas do Brasil» e soou non sense.
Eis então chegado Michel Temer, do PMDB. Depois de dois discursos por acaso – uma carta à presidente em agosto que não era suposto, segundo o próprio, vazar para a imprensa, e um ensaio gravado da tomada de posse que, também segundo o próprio, caiu em domínio público por falta de sorte, Temer falou, finalmente sem rodeios, à nação pela primeira vez à frente do seu governo.
Como se tivesse sido tirado às pressas, ainda empoeirado, de um baú, Temer soa antigo a cada gesto, a cada pausa, a cada sorriso, a cada murro na mesa. E, ainda por cima, disse a certa altura «(...) sê-lo-ia pela minha formação democrática (...)».
«Sê-lo-ia» é a tal mesóclise – que, se não se usa todos os dias em Portugal, no tropical e mais informal Brasil então é mesmo uma ave rara.
«Pode ser erudito mas a mim soa pedante. Que tal usar a língua falada e não a língua sebosa? Menos, Temer, menos», reclamou a colunista da revista Época Ruth de Aquino. Quase toda a gente que opina, aliás, censurou a mesóclise de Temer.
Atrás de Temer, porém, os seus ministros, quase todos ex-apoiantes dos governos PT e antes desses dos governos PSDB, fizeram ares de impressionados com o «sê-lo-ia». Como antes se impressionaram com a mandioca de Dilma, os tropeços de Lula e a pompa de FHC, e se impressionarão com o discurso do próximo a chegar ao poder diga ele o que disser.
Texto transcrito do sítio Dinheiro Vivo, do dia 17 de agosto de 2016.