Os exames nacionais do ensino básico (9.º ano) e secundário (12.º ano), edição de 2008, foram fortemente criticados por várias associações e especialistas de diferentes áreas do saber. A crónica de Inês Pedrosa publicada no Expresso e reproduzida abaixo faz uma análise crítica dos exames de língua portuguesa.
Cara leitora, caro leitor: já que teve a bondade de pousar os olhos nesta página, aproveite para testar a sua capacidade de atenção. Leia o seguinte parágrafo: «A União Europeia (UE) está empenhada no desenvolvimento sustentável. Para tal é necessário um equilíbrio cuidadoso entre a prosperidade económica, a justiça social e um ambiente saudável. De facto, quando visados em simultâneo, estes três objectivos podem reforçar-se mutuamente. As políticas que favorecem o ambiente podem ser benéficas para a inovação e a competitividade. Por sua vez, estas impulsionam o crescimento económico, que é vital para atingir os objectivos sociais.» Chegou ao fim destas linhas ainda de olhos abertos? E percebeu que raio quer isto dizer? Se é esse o caso, parabéns. Sobreviveu ao primeiro pedaço do texto A do exame de Língua Portuguesa do 9.º ano de escolaridade. Trata-se de um texto anónimo, retirado da Internet, do sítio da União Europeia — sem dúvida uma forma original de motivar os jovens para o encanto da Língua. Um desafio, como agora se diz. Chato, comprido, irrelevante — e naturalmente fácil, para quem esteja habituado a viver assim, no registo da chatice irrelevante, e goste de assinar de cruz respostas já prontas, num eurocratês puro.
O glossário do texto é composto pelas palavras «emergente» e «equitativas», o que é dizer bastante — como terá Eça de Queirós conseguido escrever a sua vasta obra sem utilizar estes vocábulos? Mas claro que isto não interessa perguntar. Que amor podem criar à língua e à literatura estes jovens, adestrados para escolher alternativas entre frases ocas de textos igualmente ocos, e, na melhor das hipóteses, pífios? Que interesse podem criar, até, pela ideia de Europa, com este cordão frouxo de banalidades inconsistentes e de jargão tecnocrático? Se o objectivo era aliar ao conhecimento da língua uma reflexão sobre o futuro da Europa, poderiam ter seleccionado um texto de Eduardo Lourenço. Um texto que fosse, enfim, um texto: uma colecção de palavras que inquietam e nos obrigam a pensar. Ora, o que esta escolha demonstra com absoluta clareza é que não se pretende fazer com que os jovens pensem, interroguem, ganhem curiosidade pelo mundo ou pela leitura a ponto de pretenderem alterar o estado das coisas. Pretende-se, sim, que eles engulam um dicionário de termos sonantes e politicamente correctos (o «desenvolvimento sustentável», o «ambiente saudável», as políticas que impulsionam «a inovação e a competitividade», etc., etc.) e que aprendam a debitá-lo polida e acefalamente. O «desenvolvimento sustentável» é o equivalente contemporâneo aos manuais de bom comportamento da Mocidade Portuguesa de outrora.
Saramago e Camões são os autores dos outros textos do exame. Mas tanto podiam ser eles como o Manuel dos Anzóis, porque nunca é pedido aos alunos que demonstrem conhecer, de facto, a obra destes escritores. O texto de Saramago, aliás, tem amputações diversas — embora identificadas. Talvez seja legal retirar excertos de textos, que podem, inclusivamente, alterar-lhes o sentido. Mas não me parece legítimo para os autores, nem educativo para os estudantes.
«Os Lusíadas» de Camões aparecem também no exame de Língua Portuguesa do 12.º ano — mas, uma vez mais, não se pede aos alunos, que estudaram a Literatura Portuguesa até Saramago, que manifestem algum conhecimento sobre os autores, as obras, as épocas ou as correntes literárias. Caro leitor, cara leitora, tenha um pouco mais de paciência e leia este excerto do Canto IX de «Os Lusíadas»: «Mas a Fama, trombeta de obras tais,/ Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos/ De Deuses, Semideuses, Imortais, Indígetes, Heróicos e de Magnos./ Por isso, ó vós que as famas estimais,/ Se quiserdes no mundo ser tamanhos,/ Despertai já do sono do ócio ignavo,/ Que o ânimo, de livre, faz escravo.» A paciência que lhe solicitei não era, obviamente, para os belos versos de Camões, mas para a pergunta que se lhes refere, e que é esta: «A ‘Fama’ desempenha um papel fundamental no processo da imortalidade. Refira três dos aspectos evidenciados nesse desempenho, fundamentando a sua resposta com citações do texto.» Agradeço que me digam o que é suposto responder-se a esta pergunta, porque eu não sei. Telefonei a uma emérita professora de Português, que me disse que também não sabia. Sabia só que havia instruções do Ministério para que na correcção das provas se privilegiasse a forma — ou seja, a capacidade de expressão — , independentemente dos conteúdos — ou seja, dos conhecimentos manifestados. Portanto, quando numa resposta de exame surge que «Pessoa apela à degradação de Portugal» e que por essa época «Portugal passa a localizar-se na Europa Ocidental», por exemplo (e este é um exemplo concreto), o que importa é que o aluno consegue escrever frases formalmente correctas em língua portuguesa. E assim se melhoram as notas, para que se possa verificar a evolução do Ensino e a excelência deste Governo.
Expresso, Revista Única, de 28 de Junho de 2008.