« (...) [O ensino à distância] não substitui o ensino presencial, que tem uma dinâmica mais compensadora, mas penso que é mais útil vermos os aspetos positivos do que nos focarmos só no problema da distância. (...) »
É dos poucos portugueses que podem afirmar «a pandemia não me trouxe alterações no quotidiano» e que «o distanciamento social condiz perfeitamente com a minha personalidade». Após publicar uma gramática e um manual de latim, seguir-se-á o novo volume da Bíblia.
Este Natal deixou muita gente triste por não ter publicado mais um volume da tradução da Bíblia. Era o momento para um intervalo?
Parece um intervalo, mas na realidade é mais um sintoma que tem a ver com a extensão maior de texto na parte do Antigo Testamento em que estou a trabalhar. O próximo volume conterá o primeiro conjunto dos livros históricos, começando com o Livro de Josué. É uma maratona a longo prazo em termos de trabalho.
A pandemia organizou-lhe a vida ou não necessita de confinamento para se focar no trabalho?
Até me sinto culpabilizado por ser um sortudo a quem a pandemia não trouxe alterações no quotidiano. Foi necessário adaptar-me a dar aulas por Zoom, mas tirando isso não me senti afetado, porque o estado normal em que vivo é de confinamento. A minha vida consiste no meu trabalho com as duas línguas clássicas, grego e latim. Essa é a minha grande fonte de realização e também de entretenimento. De resto, o distanciamento social condiz perfeitamente com a minha personalidade.
Para quando a edição completa dos seis volumes da Bíblia?
É impossível prever, dada a própria natureza do trabalho.
Depois de publicar a Nova Gramática do Latim seguiu-se Latim do Zero. Sentiu apetência por este conhecimento por parte dos leitores ou foi uma exigência sua?
Eu diria que a apetência foi sobretudo minha. O livro completa o material que está na página Latim do Zero no Facebook, que já tem mais de 15 mil seguidores. Além disso, penso que para muitas pessoas é mais cómodo terem as 50 aulas de latim num livro, em vez de as estudarem sob a forma de posts numa rede social. Também é verdade que o formato de livro me permitiu o desafio de pôr as pessoas a ler, em latim, a Eneida, de Vergílio, graças à metodologia da tradução interlinear conjugada com notas de rodapé com explicações gramaticais. O formato de uma publicação não permitiria fazer isso. E confesso que se fosse eu o destinatário desse trabalho acharia cansativo para os olhos estar a ler um canto inteiro da Eneida sob a forma de um post no Facebook. O livro continua uma invenção milagrosa, a meu ver, que está muito acima de computadores e tablets.
Como tem sido o confronto com o ensino online?
Uma aprendizagem muito positiva. Não substitui o ensino presencial, que tem uma dinâmica mais compensadora, mas penso que é mais útil vermos os aspetos positivos do que nos focarmos só no problema da distância. Por ser ensino à distância não deixa por isso de ser ensino. Entre os meus colegas na Faculdade de Letras de Coimbra, não sou o único a reparar nalguns benefícios surpreendentes do ensino online. O mais curioso, para mim, foi a melhoria no índice de assiduidade dos alunos às aulas, pois os estudantes de Coimbra são em grande parte pessoas que não nasceram em Coimbra nem têm família na cidade. Quando a aula é online, praticamente todos comparecem. Sobretudo se for às nove da manhã.
O ensino ressente-se desta forma de lecionar?
A dinâmica de uma aula à distância é necessariamente outra e há mais dificuldade em interagir em tempo real com os alunos. Não me parece que o ensino propriamente dito seja pior, mas o que me faz falta numa aula à distância é perceber em tempo real se os alunos estão a acompanhar sem problemas as minhas explicações. Uma coisa que faço muitas vezes numa aula presencial é explicar uma matéria e depois propor um pequeno problema baseado nessa matéria e pedir aos alunos que escrevam no caderno a solução. Depois dou uma volta à turma e vejo o que cada um escreveu. Isso dá-me logo o grau de compreensão individual daquilo que acabei de explicar, sem pôr ninguém em causa ao pedir que digam a solução em voz alta. Esse tipo de coisa é muito mais difícil numa aula à distância.
Ao abrir no Facebook uma aula de latim encontrou não só "alunos" portugueses como brasileiros. Surpreendeu-o esse caldo de interessados aos milhares dos dois países?
Em Coimbra estou habituado há dez anos a ter sempre alunos brasileiros nas minhas turmas. Já reparei que, nas redes sociais, muitos dos meus seguidores são brasileiros, portanto isso é para mim perfeitamente normal. Além de que sou casado há cinco anos com um brasileiro: a ausência de distinção entre "português" e "brasileiro" já faz parte da minha forma de ver o mundo.
O desejo de aprender latim esfumou-se entretanto ou mantém um universo inesperado de estudiosos?
A minha intuição é que o latim está à beira de um renascimento muito forte em Portugal, sobretudo na sociedade civil fora das escolas e das universidades. Vejo isso muito bem pelas pessoas que me seguem no Facebook: são pessoas que se vão interessar cada vez mais por aprender latim e ler em latim, independentemente do sistema de ensino. Claro que acalento a esperança de que o ensino secundário e o universitário apostem cada vez mais nas línguas clássicas, mas não me parece que o sistema de ensino tenha hoje o poder, como já teve, de passar o atestado de óbito ao latim. No novo mundo em que vivemos, onde tudo está na internet, uma coisa boa que vejo é que a internet tem contribuído muito positivamente para a sobrevivência das línguas clássicas.
A página na rede social chama-se Vergílio em Coimbra. Esquecendo o trocadilho, colocando-o em Coimbra tem mais encanto do que em Lisboa ou no Porto?
Bom, é evidente que Coimbra tem uma tradição ininterrupta no ensino das línguas clássicas desde o século XVI. Isso é uma honra, sem dúvida, mas também uma responsabilidade. O que se torna cansativo, para mim, é a permanente necessidade de lembrar o valor deste património a universitários de outras áreas. Isso é a desvantagem de as pessoas passarem por um ensino secundário em que nunca estudaram uma língua clássica. Como demonstrar a um professor universitário, que não sabe uma palavra de latim que o ensino dessa língua que ele desconhece é algo de grande valor? A minha esperança é que o livro Latim do Zero funcione como argumento, dirigido a leigos na matéria, a favor do latim.
Na primeira nota às Odes de Horácio refere a sua preferência nas edições críticas, a de Keller/Holder, e revela que anseia por outra, a de R.J. Tarrant. São razões de credibilidade que o levam a preferir uma edição ou são de outra ordem?
A credibilidade é o fator determinante, mas o que alicerça essa credibilidade varia muito consoante a problemática específica da transmissão manuscrita deste ou daquele autor. Vergílio e Horácio são autores cujo texto nos chegou em relativo bom estado, o que não é o caso de Catulo ou de Propércio. Eu diria que não houve, até hoje, uma edição totalmente satisfatória do texto latino de Horácio e, por isso, estou muito curioso com a futura edição de Tarrant (catedrático de Harvard), sobretudo no que toca ao uso que ele vai fazer dos manuscritos medievais mais tardios. Muitas pessoas pensam que está tudo feito e estudado relativamente aos autores latinos clássicos, mas ainda há muitos manuscritos do século XV com o texto de Catulo e Horácio que nunca foram estudados. Será que algum dia veremos o nome de um português, como editor de Catulo ou Horácio numa grande editora internacional? No século XVI, um português nascido na Vidigueira chamado Aquiles Estaço publicou a sua edição de Catulo em Veneza, com comentários em latim. Essa é uma edição que ainda tem valor hoje – pelo menos atendendo à sua época – e continua a ser consultada por estudiosos internacionais. Pergunto-me: o que aconteceu ao ensino do latim no nosso país do século XVI para cá?
Na Nova Gramática do Latim apontava o dedo à falta de vocabulário, dizendo que a recompensa de o aprender de cor é muito superior ao esforço para o fazer. Parece quase uma promessa de um político...
Como professores temos de prometer resultados aos alunos. Mas sou sempre muito sincero a sublinhar a grande necessidade do investimento pessoal de tempo e de esforço.
Aliás, no preâmbulo desse livro criticava a utilização de metodologias do tempo da ditadura de Salazar. Porque se têm prolongado tanto no tempo?
Referia-me ao programa de estudos implícito nessas gramáticas liceais e à ideia subjacente, entretanto ultrapassada, de que o objetivo de escrever em latim é tão importante quanto o de ler em latim. Hoje, a ênfase está mais em estratégias que levem os alunos a ler bem em latim. Mas referi Salazar também pelo facto de o latim ter beneficiado de protecionismo no ensino oficial durante o Estado Novo, o que levou naturalmente a uma reação adversa depois do 25 de Abril. Infelizmente nunca houve uma figura carismática dos Estudos Clássicos ligada à oposição contra o Estado Novo. Nunca tivemos um Lindley Cintra. Quando aconteceu o 25 de Abril, os catedráticos de Estudos Clássicos, tanto em Lisboa como em Coimbra, eram pessoas que tinham convivido bem com o Estado Novo. Muitas pessoas associaram aos Estudos Clássicos uma mistura pouco apelativa de discurso saudosista e de catolicismo conservador. O castigo veio sob a forma da eliminação progressiva do latim da escola secundária e da maior parte dos cursos de Letras nas universidades.
Ensaísta, tradutor, ficcionista, poeta e docente de línguas clássicas são as "profissões" ou as atividades literárias que estão nas biografias dos seus livros mais recentes. Falta, sobra alguma ou sente-se refletido por inteiro nelas?
Eu penso que o escritor de ficção e de poesia cedeu claramente o lugar ao tradutor de línguas clássicas. Hoje em dia já não me faz falta escrever literatura. Mas se me tirassem o estudo de Vergílio, isso, sim, fazia-me muita falta.
Trabalho publicado no Diário de Notícias de 4 de janeiro de 2021.