«(...) Um arrastar do ensino sob o signo do absurdo e da assobiadela para o lado, com a agravante de se fingir que se recuperarão milagrosamente aprendizagens.(...)»
[Em Portugal], o poder político, independentemente de quem o represente, tem-se habituado, com impunidade, a alimentar o absurdo que depois impõe, optando também pelo gesto descontraído de assobiar para o lado. As situações que o revelam são inúmeras e basta pensar em algumas, podendo repetir-me: as plantações intensivas de abacate («eucalipto da fruta»), no Algarve, a contínua destruição da Serra de Carnaxide, a recém-anunciada venda do Parque de Campismo da Galé, em Melides, para instalação de resorts de luxo, a ideia ainda não posta de lado da construção do aeroporto, no Montijo, a constante falta de recursos humanos no SNS e encerramento de vários Serviços de Urgência, o último dos quais no Hospital de Santo André, em Leiria, a exploração ostensiva de migrantes, em Odemira, os planos de recuperação das aprendizagens, a escola inclusiva e tantas outras.
Têm em comum estas situações, e não será novidade para ninguém, a bondade dos discursos de quem atabalhoadamente diz que irá resolver o problema, seja em defesa do ambiente ou dos utentes ou dos migrantes ou dos alunos, pressentindo-se, quantas vezes, a manifesta promiscuidade que envolve instituições oficiais de defesa ou conservação de…, ministérios ou presidentes de câmara com entidades particulares, grandes empresários, nacionais e estrangeiros, ou peritos escolhidos a dedo. Em muitos casos, pode acontecer, como nos romances policiais, ter a vítima o azar de inadvertidamente pedir socorro ao próprio assassino, outras vezes, a Justiça pode acabar por dar razão a associações ou a movimentos de cidadãos, mas entretanto arrasaram-se reservas ecológicas, plantou-se indevidamente, construiu-se, fechou-se, adiou-se, sofreu-se, tudo sob o olhar sarcástico e cinicamente sorridente de quem sabe estar protegido pela inércia ou cumplicidade do poder político, pelo dinheiro e por “bons” advogados. Está na sua natureza! Só não temos que os aguentar, nem a eles nem aos bla-blas de quem se serve da política para enganar, pondo em risco o futuro do mundo e de todos. Nós, os que nos insurgimos, podemos aparentemente perder, mas a capacidade de resistir, que nos caracteriza, estimula incansavelmente a vontade de vencer. E não poderei prosseguir, sem deixar o meu elogio superlativo a Greta Thunberg, quer pelo seu clarividente «Como se atrevem?», que assanhou muitos comentadores e políticos, habituados que estão a manipular, camuflar e mentir, quer pela enumeração expressiva e contundente dos seus repetidos bla-bla-bla! que os leitores podem ouvir nesta ligação.
Focando-me no ensino, é nele que quero evidenciar alguns dos absurdos que nos têm sido impostos, apesar de continuamente desmontados. O certo é que persistem. Foi-nos dito, e continua a ler-se nas entrelinhas, que a qualidade do ensino não depende do número de alunos por turma. No entanto, todos sabemos por experiência que há grande diferença entre ter 20, 25, 30 ou mais alunos, na sala de aula. A minha melhor turma, em 40 anos de ensino, tinha 12 alunos, o que significa que havia minimamente tempo para os acompanhar. Foi na Escola Secundária Marquês de Pombal, em Lisboa, disciplina de Francês, 12.º ano. Nunca trabalhei tão eficazmente e puderam os alunos corrigir erros gramaticais já antigos e desenvolver em pleno o seu estudo da língua francesa, como nesse ano da década de 90.
Defendendo-se, e com justiça, a escola inclusiva, é incompreensível que o número de alunos por turma não constitua uma preocupação pedagógica, com a agravante de se continuar a responder «que mais um ou dois não constitui problema». Ouvi-o inúmeras vezes, e sei que assim continua: os alunos não como pessoas, mas como um número. E, por isso, o ministro da Educação vem chorar o que se gasta por aluno, na Escola Pública, um comportamento lamentavelmente interiorizado nos ministros da educação. Afinal, que papel será o da Escola Pública, senão o de garantir boas condições e qualidade de ensino para todos, o que sem investimento financeiro e professores motivados não acontecerá. Daí estar tão convicta de que a imposição de não reprovar alunos nada mais significa que o forte desejo de os “despachar” da escola, sem o mínimo de preocupação pela qualidade da sua vida futura. A reprovação diminuiria certamente com menos alunos por turma, havendo também um acompanhamento sério, e sublinho o adjectivo, porque efectivamente não há esse acompanhamento, exigindo-se, quantas vezes, a um professor o que é impossível de cumprir.
Deixo um pequeno exemplo que faz parte da minha experiência recente: uma criança do 1.º ciclo pode entrar na escola, por exigência do trabalho dos pais (numa listagem europeia são os que menos tempo estão com os filhos), às 8h00 e sair às 19h00. Pode acabar as suas aulas propriamente ditas às 14h30 e frequentar a seguir, das 15h00 às 16h00, actividades extracurriculares (AEC), para depois ser recebida no CAF (Componente de Apoio à Família) até ao regresso dos pais. De referir que das 16h00 às 19h00, poderão fazer os trabalhos, com mais ou menos barulho, numa sala CAF, mas sem o apoio de um professor, o que, num sistema político preocupado com os alunos, exigiria a sua presença assídua. Cansada, no seu regresso a casa, e muitas vezes com a agravante de nela não ter quem lhe tire dúvida alguma, o que se espera que aconteça a essa criança?
Na verdade, a desmotivação surge quando os alunos se sentem cansados e incapazes de acompanhar as aulas, piorando a situação a sufocante mania de avaliação diária, e por cores, que tantas vezes propicia a humilhação. Convivi com uma criança, então no 2.º ano, que, não querendo ir para a escola, me questionou com inteligência, forçando a minha reflexão: «Como queres que eu goste de ir para a escola se só tenho amarelos?». Pela minha experiência presente, não é invulgar também ouvir que x «só tem vermelhos», o que me lembra as filas de ouro, prata, bronze e chumbo, na escola salazarista que frequentei e o estigma que cria em quem se vê apontado, o que, aliás, tem acontecido obscenamente com os imparáveis rankings. Não se põe em prática o que se considera justo, antes se apregoa em tom espectacular a série de boas acções ministeriais «para os mais desfavorecidos». Comportamentos que reflectem uma sociedade de espectáculo, uma sociedade que se anima com o bodo aos pobres ou convida à contemplação do sofrimento humano.
Engana-se quem pensa que as crianças do 1.º ciclo, que permanecem praticamente de manhã à noite na escola e que em princípio aí farão os seus trabalhos, podem ser ajudadas pelas funcionárias do CAF. Por muito boa vontade que estas tenham não se lhes pode exigir que saibam Gramática, para além de os programas, com destaque para os de Matemática, apresentarem uma imensa diversidade de itens temáticos que muitos dos próprios encarregados de educação não compreendem. Fazer uma conta, por exemplo, é algo de muito complicado. Escolhendo uma subtracção, as crianças devem aprender a fazê-la usando estratégias várias e o certo é que muitas emperram nessas estratégias, tendo, no entanto, êxito, no uso do método tradicional, agora dito «conta em pé». Dou um exemplo, escolhendo a forma mais fácil de o registar graficamente: 67-24= (60 + 7) – (20 + 4) = (60 - 20) + (7 - 4) = 40 + 3= 43.
Se tivermos em conta que todas estas estratégias de cálculo exigem muito treino e que a diversidade de matéria é exagerada, não o facilitando, compreenderemos porque falha o ensino da Matemática. A meu ver, é ainda nocivo o facto de muitos professores mandarem raramente trabalhos para casa (TPC), atitude perspectivada por muitos como anti-pedagógica, e, no entanto, é flagrante, e mais uma vez falo com conhecimento de causa, a diferença de resultados, para melhor, seja na escrita, na leitura e na destreza mental, em alunos cujos professores pedem TPC, dando na semana um dia de folga. Imunes a teorias que contrariam o óbvio, são muitas vezes malvistos e, quiçá mal avaliados, o que não os impede de prosseguir a sua estratégia, dedicando até mais tempo aos alunos que no CAF não conseguem fazer os seus trabalhos, devido a dúvidas várias.
Oportunamente chegou o artigo [da economista] Susana Peralta, a propósito da actuação do grupo de trabalho criado pelo ME que, na posse de dados sobre os efeitos da pandemia na aprendizagem, apontaria propostas de recuperação. Respondeu a muitas das minhas dúvidas, nomeadamente porque passara quase despercebida a informação sobre os resultados das provas de aferição no básico, evidenciando o absurdo o facto de a informação entregue pelo ME não permitir «comparar a situação existente antes e depois da pandemia». Posso dizer, por experiência familiar, que os alunos, agora no 3.º ano, perderam, no conjunto do 1.º e 2.º anos, praticamente meio ano de aulas presenciais, sendo anos cruciais, como sabemos. E até o prolongamento do ano lectivo por mais 15 dias, no mês de Julho último, foram perdidos para muitos alunos devido a surto de Covid na sua sala de aula. E refiro também este caso com conhecimento de causa. É por demais evidente que os programas que se disseram cumpridos não se ajustam à evidência da aprendizagem feita. Não é, por exemplo, com 2 ou 3 exercícios sobre o perímetro, a área ou o volume que os alunos ficam a compreender a matéria e, folheando o manual de fichas de revisão de matemática do 3.º ano, dou-me conta de que estão a rever o que nem sequer foi leccionado. De novo se acentua a diferença de oportunidades entre os que em casa encontram quem tente minimizar esses nefastos efeitos e os que não recebem apoio algum.
Um arrastar do ensino sob o signo do absurdo e da assobiadela para o lado, com a agravante de se fingir que se recuperarão milagrosamente aprendizagens. Aliás, o início das aulas apenas a 20 de Setembro p.p., sendo para muitos alunos um dia de apresentação, é bem elucidativo deste tenebroso faz-de-conta que se perpetua. E repito Greta Thunberg: «Como se atrevem?»
Artigo de opinião da edição de 23 de outubro de 2021 do jornal Público.Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.