No «Alfa» para o Porto, o revisor, ar compenetrado mas afável, vem verificar o bilhete. Devolve-lho com um «Muito obrigado», uma cortesia que só fica bem à empresa. No banco ao lado, segue uma senhora. Ao entregar-lhe o bilhete, o revisor diz: «Muito obrigada». Um casal mais à frente receberá do revisor um convicto «Muito obrigados». O viajante ainda pensou armar-lhe uma espera, a instruí-lo, mas hoje prefere imaginar que, todos os dias, anda um senhor revisor, país acima país abaixo, adaptando aos clientes a sua gratidão.
A fórmula portuguesa do agradecimento presta-se a estas derivas. Cedo ou tarde, a originalíssima fixação no sexo haveria de levar algum falante mais atencioso a este extremo de delicadeza: orientar-se pelo sexo do outro. Mas a realidade diária é ainda mais simples. Sempre foi normal um homem dizer «obrigada», e é vulgaríssimo ouvir-se a uma senhora «obrigado». Em suma, ninguém na prática, ao agradecer, pensa no sexo, próprio ou alheio. A forma não-marcada, básica, é «obrigado», com uma variante, «obrigada», utilizada sobretudo por uma mulher. Algo semelhante se passa com «sim senhor» e «sim senhora», indiferentes que são ao real sexo do interlocutor. Diferença, se a há, é de intensidade: o feminino, «sim senhora», «não senhora», denota suplementar convicção. Seria artificioso discernir, nestes factos, quaisquer «problemas».
Os responsáveis de Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, um «website» da Internet, são bastante menos laxistas. Para eles é óbvio, indiscutível: uma senhora deve dizer «obrigada», um cavalheiro «obrigado». Trata-se, explicam, do resíduo de formulações do tipo «Estou-lhe obrigado, ou obrigada, pelo favor». Uma circunstância «histórica» funciona, assim, como directiva para a actuação presente. Uma curiosidade diacrónica acaba transformada em fonte actual de insegurança, quando não de má-consciência. Ciberdúvidas acredita na História, e acredita, desmedidamente, na razão. Guiado por ela, determina o que é «correcto». «A gente vamos» é um erro de concordância, e por isso uma «incorrecção». Eis-nos conversados.
Estranha, esta vocação legalista em ambiente cibernético? Não. As pessoas buscam certezas, e Ciberdúvidas nasceu para lhes estender um apoio. Consultantes ou informadores, uns e outros focam, na língua portuguesa, não o criativo mas o «traiçoeiro». Daí que, ao longo dos meses, os mesmos pedidos de esclarecimento se repitam. Devo escrever «de mais» ou «demais»? Posso dizer «mais pequeno»? É «deve fazer-se» ou «deve-se fazer»? Quando dizer «ter de» e quando «ter que»? Quando escrever «se não» e quando «senão»? É «informo que», ou «informo de que»? São, um por um, pontos de compreensível hesitação, onde todo o esclarecimento é bem-vindo. Mas a ansiedade dos consultantes parece comunicar-se aos informadores, e eles ainda a reforçam. Com esta convicção, esta estreiteza de horizontes: «O que deve imperar é o correcto e não o uso. Se formos apenas pelo uso, qualquer dia não nos entendemos. É certo que é o uso que faz a língua, mas este, o uso, tem de ser devidamente preparado e corrigido» (edição de 27-X-1997). Não há posição mais frustrante de qualquer dinamismo.
As coisas seriam menos graves se a qualidade geral da secção «Perguntas/Respostas» fosse de molde a impressionar-nos. Mas, à parte a informada contribuição de Fernando Venâncio Peixoto da Fonseca e os vivos textos de Teresa Álvares (lê-la, a esta, é já um prazer), à parte isso, as respostas vão, mais vezes do que razoável, do embrulhado ao insípido. No segundo mês de existência do «site», um leitor pedia informação sobre o uso de «ter de» e «ter que». Seria fácil elucidá-lo. Dizia-se-lhe, primeiro, que «Tenho de avisá-lo» e «Tenho que avisá-lo» são na prática sinónimos, e que, segundo, uma frase como «Tenho muito que fazer» não pode ser substituída por «Tenho muito de fazer». Pois bem, múltiplas insistências não conduziram, até hoje, a esse esclarecimento. Meses levou, igualmente, até o «site» dar resposta capaz à questão «informar que/informar de que». Confusas foram largo tempo, também, as respostas sobre «de mais» e «demais». A colocação do pronome átono («Levantou-se», «Não se levantou»), tema também ele recorrente, não foi mais feliz. Existem regras claras, existem desvios estilísticos. Mas que faz o especialista José Neves Henriques? Brinda-nos com variantes de certa frase, e vai-as apreciando segundo, imagine-se, a eufonia. Uma está «mais bem ritmada», outra «pronuncia-se com mais facilidade», esta tem uma «sonância menos agradável», aquela é «mais rítmica», outra contém um «seguimento desagradável». É uma conversa «au coin du feu» internético.
Isto tudo não obstou a que o «site» (ou «página», ou «sítio», que também é bonito) mantivesse, desde a sua criação em Janeiro de 1997, uma inequívoca popularidade, contando todos os meses cerca de seis mil «visitas». Ciberdúvidas da Língua Portuguesa apresenta-se como «programa educacional e cultural», inspirado numa «filosofia de jornal», patenteada em secções de divulgação, de notícias, opinião, debate, polémica, correio de leitores. A «página» não é só o mais recente, é também o mais manejável dos «consultórios linguísticos». Vasco Botelho do Amaral, nos anos 40, ou Edite Estrela, nos anos 80, intervinham no jornal e no livro. Nos primórdios da RTP, Raul Machado ensinava o país pelo ecrã. Hoje, Ciberdúvidas está «em linha» a qualquer hora do dia e da noite, com as «últimas» em matéria de «dúvidas» e as respostas da redacção. A isto se soma todo o género de secções: a de «Controvérsias», um «Pelourinho» («Maria Elisa, diga êispu»), um «Correio» de leitores, uma (valiosíssima) «Antologia» de escritores de língua portuguesa, um «Glossário» de erros frequentes.
Simplesmente, a sombra dos predecessores é mais do que uma figura de estilo. Embora sofisticadas, para se lerem de «rato» na mão, as «Perguntas/Respostas» mais propriamente linguísticas vão-se revelando um «déjà vu», numa medida algo assustadora. Já Botelho do Amaral, já Edite Estrela, haviam explicado, uma e duas vezes, o que se passa com «a gente vamos», com «supônhamos», com «à última da hora», com o «obrigado» e o «obrigadinho». Estes e bastantes outros pontos ficaram aí tão esclarecedoramente expostos, que dá pena vê-los hoje tratados com mão menos segura. E que observamos? O rol das «ciberdúvidas» vai, inexoravelmente, coincidindo com as Dúvidas do Falar Português, de Edite Estrela, onde se trataram também já os temas «rendível/rentável», «acordos», «houveram», «desde Londres», «interviu», «pronúncia de 'texto'», «eu parece-me», «despoletar», ou o celebrizado «bilião». Poderia, assim, pensar-se que os responsáveis levavam a sério o que um correspondente, Carlos Sousa Ferreira, escrevia na edição de 18-IV-1997: «O Ciberdúvidas é útil como registo das dúvidas dos falantes, embora muitas delas sejam já velhas de pelo menos 50 anos e as respostas continuem a ser as mesmas». Mas não. Com alguma leviandade, João Carreira Bom (da JCB - Consultores de Comunicação, responsável pela «página») prontamente comentava: «Segundo CSF, de meio em meio século muda a totalidade dos elementos que constituem a língua e, no meio século seguinte, já não há vestígios do meio século anterior». Evidentemente, não foi isso o que o correspondente afirmou. (Pouco «chique», a secção «Perguntas», desse mesmo dia, atribuía a uma «má-fé» os reparos.) Já é suficientemente grave este recurso ao vezo chalaceiro, o mesmo que há quatro ou cinco décadas fazia a delícia dos leitores de João de Araújo Correia, magnífico estilista, mas algo desnorteado na «defesa» do idioma. Mais grave é que os responsáveis ignorem um sério aviso a todo o empreendimento que dirigem.
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa tem ainda bastante que aprender. Antes de mais, precisa de rever o «clima», a «cultura» interna. Tem de deixar-se de atitudes defensivas (género: «não foi isso o que se nos perguntou») e, pior, achincalhantes para o consultante. Se um colaborador se exprime, um dia, com infelicidade (como na sugestão de «estalidar» por «clicar»), deve, ao ser-lho apontado, concedê-lo com desportivismo. Depois, a importante secção «Controvérsias», que, com alguma demasia, dá abrigo a esse mau-perder, precisa de ser repensada. Ciberdúvidas pode, com ganho para todos, reger-se pela tolerância, pela razoabilidade, pela percepção dos processos, das transições, dos espaços de manobra. Longe de comprazer-se na incerteza linguística do utente, deverá estimular nele um falante inventivo e ousado.
Cf. contraponto deste texto Obrigado, obrigada e Incerteza ou laxismo?
Artigo publicado no semanário português "Expresso" (Cartaz, Actual) no dia 4 de Abril de 1998.