Depois de três meses de muita “acção”, as escolas devem fazer “a digestão” do que aconteceu e olhar com atenção para os alunos que se desligaram – defende, em entrevista à jornalista Helena Pereira *, o professor e catedático da Universidade do Porto Joaquim Azevedo, o membro mais antigo do Conselho Nacional de Educação,
* in jornal Público. de 25/06/2020
No 1.º Congresso de Escolas, que decorreu na [Fundação Calouste] Gulbenkian, em 2017, disse que «a escola não pode ser o que era há 30 anos» e que era «preciso perceber o que se está a passar à nossa volta». Perante a situação que vivemos hoje com a pandemia, a escola percebeu o que se está a passar à nossa volta ou ainda está mais distante?
A escola percebeu bastante bem e reagiu, colocando-se numa atitude de emergência. Foi capaz de se reinventar com bastante generosidade e criatividade. Isso está à vista de todos. Certamente que houve dificuldades, mas creio que houve um banho de realidade que se impôs.
O que trouxe de bom? Consegue identificar alguns aspectos positivos?
Houve vários. Desde logo, fez o upload de um conjunto de dispositivos tecnológicos que existem e que, por força das circunstâncias, passaram a ser generalizados, pese embora haja uma grande diferença entre escolas e entre professores na forma como isso foi feito. Outro aspecto positivo foi a descoberta pela sociedade da relevância da escola enquanto instituição comunitária. Falhar a escola é falhar uma dimensão essencial da vida comunitária. Essa descoberta teve uma contrapartida dentro da escola que é esta ter em conta a realidade sociocultural, a diversidade e a desigualdade que existe entre a população que a frequenta. Há outros ganhos como perceber que a mudança e a inovação em educação não são impossíveis. Isto ficou claro neste campo da renovação digital. É pena que tenha de ser por meios tão drásticos e adversos.
Agora há que aproveitar esse impulso...
Sim, essa é a minha tese. Há que fazer um esforço de reflexão. Houve muita acção nestes três meses. É preciso fazer um esforço muito grande de reflexão nas escolas, tentando perceber os ganhos, fazer o balanço dessas conquistas porque elas podem perder-se rapidamente se não houver uma reflexão muito clara sobre elas. Também [deve haver uma reflexão] sobre os constrangimentos e principais dificuldades. E isto deve ser feito ao nível da escola, de cada agrupamento. Com base nesses dados, deve-se fazer a digestão e preparar um plano para a reentrada em Setembro.
O Governo fala numa nova escola digital em Setembro. O que vai ser e o que gostaria que fosse?
Primeiro, as escolas estão com muita dificuldade em estabelecer um rumo. É difícil perceber se o modelo vai ser presencial ou à distância, qual o tipo de ocupação que a escola pode ter, se alunos e professores têm de vir à escola por secções. Com base nessa reflexão, temos de projectar uma forma de trabalhar que preveja, por exemplo, a modalidade presencial e a não-presencial. Temos de preparar para fazer o melhor possível se for tudo à distância ou se for misto.
O ministro de Educação já disse que o sistema deve ser b-learning.
Eu próprio penso que o sistema de b-learning deveria ficar para sempre, mesmo que não haja pandemia. Cada vez mais o recurso a estas plataformas electrónicas para o ensino à distância devia ser complementar ao dispositivo que é estarmos presentes. É muito enriquecedor para o sistema de ensino a possibilidade de recorrer a estas plataformas. A educação tem mesmo de se tornar mais digital. Há escolas que estão a fazer isso há vários anos e essas escolas estão a aproveitar muito mais do que as outras com esta situação. O Estado tem de apoiar todas e mais ainda as que têm mais dificuldades neste processo de digitalização da educação. Ele é inevitável e, articulado com o ensino presencial, tem potencialidades grandes.
E os nossos professores estarão preparados para isso?
A formação de professores, viu-se agora, não obedeceu a nenhum plano nacional. Teve de se fazer, as pessoas tiveram de se desembaraçar. Há imensas iniciativas de formação. Nem todos os professores aderiram do mesmo modo nem têm competências de base para aderir do mesmo modo a estes desafios de uma educação mais digital. Agora é preciso acabar com a lógica de uma educação de emergência para estabilizar um modelo que conjugue as duas vertentes do b-learning.
Não será o momento para mexer também na formação de professores?
Tenho defendido que se deve alterar todo o dispositivo disponível que existe para formar os professores. Isso começa desde a base, desde o acesso ao curso de formação de professores até ao acesso à profissão, à capacitação, à formação contínua e dignificação das carreiras. Os professores foram o segmento do sistema escolar que menos atenção teve desde o 25 de Abril. Era preciso fazer uma revisão muito mais geral, aproveitando o facto de haver agora uma geração que está a sair. Quem vai entrar são professores que não são jovens, têm 40 e tal anos e estão há 15, 20 anos no sistema, a tentarem profissionalizar-se. Esses são os que estão à frente, não são os que têm 22 anos. O sistema precisa de ser muito repensado globalmente. Quem acede aos cursos de formação de professores e com que médias? São as piores médias de acesso. O país está à espera de quê? É com as piores médias de acesso que o país se está a preparar para enfrentar os desafios tão colossais que tem a educação? É muito estranho.
Desigualdades e insucesso escolar
Enveredando por um ensino misto no futuro, não se corre o risco de aumentar as desigualdades? Como acautelar isso?
Talvez tenha sido dos aspectos que se tornaram logo evidentes. As desigualdades sociais em Portugal existem, são muito grandes e muitas vezes vamos escondendo e empurrando para debaixo do tapete. Essas desigualdades repercutem-se em contexto de emergência educativa de uma forma muito agressiva, muito dura. Há muitos alunos que desligaram a conexão com a escola e não sabemos bem com que consequências. Sabemos que no início houve uma adesão relativamente elevada, mas depois, por várias razões, o cansaço, a saturação, a componente tecnológica, a disponibilidade das famílias, tudo isso fez com que muitas crianças e jovens tivessem optado por se ir desconectando, nem o #EstudoEmCasa vêem, não comparecem. Não sabemos bem o que se está a passar com elas do ponto de vista escolar e do ponto de vista de saúde mental, de bem-estar. É preciso também ter isso em conta no arranque do próximo ano lectivo. O que é que as escolas devem fazer? Como se devem organizar? Será um ano lectivo igual aos outros? Ou o ano lectivo devia arrancar de uma maneira diferente em cada escola? Essas desigualdades não vão desaparecer, mesmo que o ensino seja sobretudo presencial, e é preciso enfrentá-las. Estes alunos estão com uma dificuldade real de acompanhamento do percurso escolar e é preciso que todo o sistema vá em socorro deles e tenha soluções pedagógicas, organizacionais para o recomeço do ano escolar.
Teme que o insucesso escolar aumente no próximo ano?
Esse risco existe, mas é diferente no início de um ciclo ou se estão no meio de um ciclo ou no fim de um ciclo de estudos. Sugiro que as escolas preparem um plano de abertura do ano escolar especialmente focado no combate a essas desigualdades e que tenha um modelo diferente e focado na recuperação de algumas aprendizagens se for o caso mas sobretudo em motivar, em voltar a ligar essas crianças e esses jovens com o contexto escolar. Isso é fundamental. Devia ser feito nas primeiras semanas. Para aqueles que se desconectaram mais, devia haver medidas específicas de apoio durante essas primeiras semanas. Se não fazemos isso, o arranque do ano escolar vai ser construído sobre uma situação desastrosa do ponto de vista da desigualdade social. Não devíamos arrancar o ano branqueando essa realidade e abrindo-o como sempre fizemos. Isso não devia ser possível.
Um estudo recente da OMS (coordenado em Portugal por Margarida Gaspar de Matos) mostrava que os alunos portugueses estão entre os que menos gostam da escola. Corremos o risco de este indicador ficar ainda pior?
Sim, sobretudo essa população que não se identifica com a cultura escolar. Tem de ser a escola a ir ao seu encontro e tem de os envolver, motivar. Tem de ser por aí senão corremos o risco de essa desafeição poder progredir e até ser irreparável em alguns casos.
O impacto da pandemia na vida escolar
Neste período de confinamento, o impacto será maior no sucesso escolar ou na socialização?
Não tenho dados para avaliar. Os alunos com níveis de sucesso médios e elevados terão aproveitado muito mais do que os outros este contexto, mas mesmo esses sofreram a falta de convívio, a falta de dimensão de sociabilidade que a escola contém. Os próprios pais perceberam a relevância que a escola tem de uma forma que não imaginavam que fosse tão grande, porque os filhos vieram para casa e os professores entraram em casa e as pessoas perceberam o que é esse icebergue escondido. Aquilo que se via da escola era a parte visível do icebergue, mas havia toda essa parte escondida, que era a vida escolar que é muito, muito relevante. A escola é a instituição sociocomunitária por excelência. Retirar essa possibilidade faz cair um sustentáculo colossal da nossa vida comum e pessoal. Eu sem os outros não sou nada. Sou uma criança ou adolescente que estou a crescer e sem os meus colegas, sem os meus professores, só isolado com os meus pais, não posso crescer. Não tenho condições de crescer. Esta descoberta também nos ajuda a perceber que eu preciso dos outros para ser quem tenho possibilidades de ser, são eles que me “desenvolvem”, que me destapam, que me desocultam. A sua ausência pode ter deixado marcas que não sabemos bem quais são. Era bom estudar a realidade portuguesa, quase como se fazem os estudos epidemiológicos.
Que queixas ouviu mais de alunos e professores?
O cansaço, saturação, excesso de trabalho. Os professores estão habituados a um trabalho muito isolado na sua disciplina e foi preciso criar um dispositivo de resposta de emergência. A equipa pedagógica começou a criar em conjunto a semana escolar. Isso é um ganho enorme e é fundamental continuar a fazer isso. Doze, 13 professores unem-se e programam uma ou duas semanas de trabalho dos alunos e deixam que, dentro dessa semana ou 15 dias, os alunos possam gerir o trabalho como quiserem, de forma a que atinjam os objectivos no fim da semana ou dos 15 dias.
Não vai ser preciso mais professores e mais apoio aos alunos?
Não sei como isso vai ser resolvido. É um dos problemas porque para termos uma resposta mais personalizada, e se tivermos de prosseguir com as medidas de distanciamento social, vamos ter problemas de organização. Uma das soluções passaria, por exemplo, por dividir as turmas. É evidente que é preciso que as instalações aguentem e implica sempre duplicar professores. Não creio que, estando ao mesmo tempo o país numa situação de depauperação económica acelerada, vá haver recursos a esse nível, que são os mais caros. A minha expectativa em relação a isso não é muito positiva.
Estaremos a caminhar para turmas mais pequenas no futuro próximo?
Não sei, tenho dúvidas. É preciso reorganizar a escola e reorganizar os grupos de alunos e os grupos de professores. No limite, posso trabalhar com grupos de cem alunos. Há actividades que não podem ser feitas com cem e posso passar para cinco ou 30. Ou posso ter projectos individuais. Isso não requer um aumento de recursos, requer é uma grande reorganização do contexto escolar. Esta lógica da divisão quase napoleónica e prussiana de os alunos estarem divididos em turmas e ponto final não faz sentido nenhum do ponto de vista do ensino. É assim porque se fez assim antes. Não tem necessariamente de ser assim e até tem desvantagens. Era mais adequado ter uma versatilidade grande na organização do grupo de alunos. Há escolas a trabalhar neste figurino e a tentar reconfigurá-lo.
O ensino privado está mais preparado para este contexto de incerteza do que a escola pública ou não?
Não tem de estar necessariamente. Depende da escola. Há escolas particulares que não estão bem preparadas. Dos dois lados, existem desafios e dificuldades. As instituições do ensino particular encontram-se aptas a ser mais ágeis a fazer essa reconfiguração e trabalham com populações talvez não tão heterogéneas. Aí poderá haver alguma vantagem. O sistema estatal é mais lento e pesado. Mas, globalmente, não. Qualquer escola pode dar esse passo. Agora, as equipas educativas deveriam ser mais estáveis. Seria uma pena que as escolas públicas não incorporassem as dinâmicas mais inovadoras. É uma grande oportunidade para as escolas públicas e para todas.
Entrevista conduzida pela jornalista Helena Pereira a Joaquim Azevedo, do Conselho Nacional da Educação, e incluída na edição de 25 de junho de 2020 do jornal Público. Manteve-se a norma ortográfica de 1945 do original.