« (,,,) Se somos feitos de palavras, sem elas passaremos a ser feitos de quê? (...)»
«As palavras são a minha memória, a minha narrativa: sou feito de palavras, porventura silenciosas; o pouco que sei são palavras, cadeias de acontecimentos que regressam na sua sequência não apenas gramatical e sintática, mas na lógica racional ou irracional da recordação, e me refazem o mundo e me narram de novo. »
Lamberto Maffei, Elogio da Palavra
Há alguns meses, escrevi uma crónica intitulada "Na era pós-leitura", publicada no Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, na qual refletia acerca de uma certa fobia à leitura que invade o nosso quotidiano. Sim, o fenómeno não é exclusivo de Portugal, tal como é corroborado pelo brilhante livro Ponham-nos a ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais de Michel Desmurguet, recentemente publicado.
No entanto, ao terminar um ano marcado por um breve regresso ao ensino básico e secundário, após uma ausência de doze anos (mais de dez a lecionar na Universidade de Macau), vi agigantarem-se os sintomas, os resultados dessa era pós-leitura. E o que senti, como professora de Português, perante a nova realidade? Uma forte alienação da parte dos alunos, emigrados, provavelmente desde tenra idade, para um universo virtual, povoado de aparências, ilusões feitas de sombras fugidias, nas quais, muitos acreditam cegamente, com todas as consequências daí provenientes.
Essa espécie de exílio transparece na forma como agem no dia a dia, espelhando-se no modo como interagem socialmente uns com os outros e, sobretudo, numa notória dificuldade de entender, de interpretar o que leem. Isto porque, na verdade, o vocabulário de que dispõem, esse arsenal de ferramentas à luz do qual nos exprimimos e tentamos entender os outros é cada vez mais restrito, elementar. Por isso, a palavra não lhes serve para expressar toda a complexidade, todo o turbilhão de emoções e sentimentos que lhes redemoinham pela alma. Tenta-se explicar uma palavra mais difícil através de um sinónimo, mas este também não é compreendido. Recorre-se a um exemplo ou a uma breve história, na esperança que uma luz de entendimento flameje, mesmo tenuemente, mas também isso é vão.
Devido a esta dificuldade de expressão, muitas vezes é a violência e agressividade que servem como meio de comunicar, numa reminiscência de uma era remota, anterior ao uso da palavra. E isto preocupa, pois quem não dispõe de vocabulário não pode argumentar, negociar, fazer valer os seus argumentos nem a sua posição. E todos sabemos que a leitura é a fonte maior de aquisição de palavras, de ideias, o melhor alimento para o pensamento, para alma, o fertilizante da criatividade, da imaginação. A partir do momento em que essa fonte seca, é o deserto que se expande, a devorar, a ocupar. Assim, surge a violência como uma peste, uma praga latente para colmatar o espaço vazio da ausência da palavra.
Assim, em pleno século XXI, parece (aliás, notícias dos vários cantos do mundo indiciam-no) que o ser humano tende, mais do que nunca, para a bárbarie, para um inusitado regresso à pré-história, a um tempo de grunhidos e guinchos, anterior a uma linguagem articulada. Referiu o médico italiano Lamberto Maffei em Elogio da Palavra que «o milagre da evolução gerou as palavras para que o homem possa narrar, para que na sucessão das gerações não se perca o património das experiências vividas. Que seria do homem sem as palavras? » E pergunto, se somos feitos de palavras, sem elas passaremos a ser feitos de quê? De que matéria se esculpirá a nossa existência para além da carne e dos ossos, convertidos depois em pó e cinza?
Artigo publicado originalmente no Jornal de Letras de 18 de setembro a 1 de outubro de 2024.