« (...) [P]ara que o idioma português preserve a sua relevância tem de deixar de ser antepassista, litúrgico e estático, tal como um dia foi o latim clássico. (...) »
O primeiro compromisso do vice-presidente do Brasil na recente visita a Portugal foi um pequeno-almoço com CEOs de grandes empresas. Quando, na sua intervenção, um dos empresários com nome X fez alusão a uma outra pessoa que, coincidentemente, também se chamava X, o vice-presidente Geraldo Alckmin soltou espontaneamente «seu xará». A maioria dos portugueses na sala não entendeu a interpolação do brasileiro.
A palavra xará é oriunda do tupi-guarani e significa «aquele que tem o meu nome». É recorrentemente usada no Brasil. Depois da inhaca e da arapuca dos últimos quatro anos que deixou a democracia brasileira capenga e a economia na pindaíba, ouvir um novo cacique político de Pindamonhangaba a falar sem nhenhenhém nem «deixar a peteca cair», cutucando aqueles empresários para investirem no Brasil, enquanto se comia um mingau naquelas cumbucas de porcelana, foi um alento.
São milhares as palavras de origem indígena usadas diariamente no Brasil e desconhecidas em Portugal. Os povos originários brasileiros falam cerca de 300 línguas diferentes. O mesmo acontece com milhares de palavras de origem africana, alemã, espanhola, japonesa e italiana levadas por imigrantes e escravizados. «Poxa, já estou briaco com o chope» diz-me um amigo num português brasileiro que assimilou vocábulos castelhanos, italianos e alemães. Foi com ele que aprendi a palavra brasileira banzo, originária do quicongo africano, como substituto de melancolia ou saudades.
Desde a chegada das caravelas em 1500, os portugueses sempre foram estatisticamente minoritários. Entre 1880 e 1930 chegaram a São Paulo quase 4 milhões de imigrantes, a maioria italianos, japoneses e sírio-libaneses. Vivem mais descendentes de italianos em São Paulo do que em Roma. Mais descendentes de libaneses do que em Beirute. É também no estado de São Paulo que reside a maior comunidade de japoneses fora do Japão. No Sudeste e no Norte brasileiros, a língua portuguesa só se sobrepôs à Língua Geral Paulista (a língua dos mamelucos) ou à a Língua Geral Amazónica no fim do séc. XVIII. No início do século XX ainda havia falantes de Língua Geral em São Paulo.
Os idiomas dos 5 milhões de escravizados sudaneses, guineanos-sudaneses muçulmanos e bantus levados para o Brasil também foram parcialmente absorvidos pelo português brasileiro. Não houve necessidade de criarem crioulos africanos no Brasil, como aconteceu no Haiti (kreyòl), Jamaica (patwa jamaicano) ou nas Seychelles (kreol seselwa). Esta riqueza foi estudada por diversos linguistas e historiadores como Rosa Virgínia Mattos e Silva, Yeda Pessoa de Castro ou Marco Lucchesi.
O português brasileiro também conservou sonoridades, construções gramaticais ou vocabulários usados pelos portugueses nos séculos XVI-XIX, mas, entretanto, extintos em Portugal, como botar, safo ou açougue. Ou o uso de próclise (pronome antes do verbo), um dos elementos mais reconhecíveis do português brasileiro. N’Os Lusíadas são dezenas de exemplos, como «Te contei tudo quanto me pediste» (Canto V) ou «Agora tu, Calíope, me ensina» (Canto III).
O português brasileiro não é apenas um armazém de matérias-primas estrangeiras. Também é produtor. Os brasileiros constantemente criam e recriam léxicos, fonologias, sintaxes e morfologias que expressam a vitalidade das diversas sociedades que vivem naquele território. Uma muvuca comunicacional. Adoram perífrases, antonomásias e gerundismos. Por influência africana, por vezes economizam nos plurais («um pastel», «dois pastel»), não economizam nas vogais (“te-le-fo-ne” em vez de “tlfone”), usam a dupla negação («não quero não») ou variam na aplicação das regras de concordância nominal e verbal ("eu vi tu na rua ontem"). Algumas palavras também estão a ficar mais curtas (independentemente passa a “independente”, para passa a “pra”).
Sobre a obra-prima brasileira Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, que reflete a plasticidade do português brasileiro, Pedro Mexia escreveu no Expresso: «Dito como se fosse escrito, escrito como se fosse dito, num português meticuloso de arcaísmos, coloquialismos, regionalismos, neologismos, frases cortadas à faca, viradas do avesso, surpreendentes, fulgurantes.» A complexa tradução para o inglês, feita pela australiana Alison Entrekin, está em execução há pelo menos 6 anos.
«Que criança serelepe», reage a minha esposa brasileira a uma rapariga irrequieta na rua. A palavra, comum no Brasil, deriva de um esquilo saltitante nativo da Amazónia. Às vezes ela também usa sapeca, com sentido semelhante, oriunda do tupi-guarani. Em 14 anos de casamento, quase todas as semanas aprendo palavras novas documentadas em dicionários brasileiros e ausentes dos portugueses. «O seu vocabulário em língua portuguesa é limitado», diz-me ela exalando um certo orgulho maroto. Os brasileiros são bambambãs em questões de língua. O Brasil representa hoje um dos mais interessantes laboratórios linguísticos no espaço da lusofonia.
Se o português falado no Brasil absorve, enriquecendo-se, o falado em Portugal segrega, murchando-se. O professor de Português do meu filho no colégio renomado de Lisboa dizia-lhe que ele tinha de aprender o português “correto”. A secretária estrangeira de uma multinacional confessou-me que prefere falar inglês porque os chefes portugueses não gostam que ela fale ao telefone em português com sotaque. Espalmamos o português para se tornar mais nosso. E assim a língua vai-se isolando e envelhecendo. As minhas sobrinhas moleques usam as mesmas gírias que eu usava em Castelo Branco há 30 anos.
Os portugueses protegem a língua padronizando o seu uso na televisão ou caçoando de todos as pronúncias regionais que se desviam do padrão olisiponense. E quantos emigrantes portugueses em França ou na Suíça não se sentiram já rebaixados nas férias de agosto por falarem com sotaque? Existem centenas de palavras de origem africana e árabe integradas no português de Portugal ao longo dos últimos mil anos. Mas nas últimas décadas, com exceção da assimilação de novos vocábulos tecnológicos de língua inglesa, o nosso idioma português deixou de ter capacidade de capturar pela língua as novas dinâmicas sociais e culturais associadas, por exemplo, à emigração e à imigração. Os emigrantes que regressam não deixam marcas na língua. Os imigrantes que nos procuram criam bolhas comunicacionais.
A nossa necessidade de proteger a pureza da língua portuguesa não é meramente de ordem linguística. Até porque os linguistas sabem que a língua é viva e os dicionários estão permanentemente desatualizados. É sobretudo uma questão de poder. Protegemos a língua como uma mãe sufocante. O português é dos poucos santuários onde ainda podemos orar ao nosso universalismo pluricontinental. Nos anos 70 as nossas fronteiras apequenaram-se. Inviabilizou-se o Quinto Império, mas sobreviveu o idioma global. São andas de pau que usamos para caminhar.
Mas corremos o risco de transformarmos a língua falada em Portugal num cafundó, cada vez mais portuguesa e cada vez menos global, guiada por zumbis que apenas nós reconhecemos. É possível que o português de Portugal, como expressão de um país relativamente homogéneo, seja menos incitado a diversificar-se. Mas outros povos, com maiores complexidades identitárias, que se expressam também em português, irão aprofundando as duas próprias versões do português se a versão falada em Portugal não responder às suas necessidades. Mesmo em Portugal, se a língua cochilar e não acompanhar as mudanças, as novas gerações procurarão alternativas em pedaços de outras línguas para se comunicaram efetivamente.
Por isso, para que o idioma português preserve a sua relevância tem de deixar de ser antepassista, litúrgico e estático, tal como um dia foi o latim clássico. Não convém esquecer que o português deriva do latim vulgar, aquela língua do povo que se misturou a dialetos locais. Por isso é que sobreviveu. Em São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa é uma celebração da pluralidade linguística. Em Bragança, o Museu da Língua Portuguesa, anunciado há mais de uma década e ainda sem ser inaugurado, é um silo de burocracias e guerrilhas judiciais. Segundo o presidente da Câmara, abrirá ao público no final de 2024.
Artigo de opinião publicado no jornal Expresso no dia 20 de julho de 2023.