Cada vez mais a Inteligência artificial invade, muitas vezes sem licença, os nossos dias. Vemo-la em todo o lado, sendo lícito questionarmos o nosso papel, o dos seres humanos, aqueles que supostamente, teriam ou deveriam ter o comando de tudo. Não sentimos tantas vezes que esta Inteligência Artificial vai colmatando certas lacunas sentidas na outra, na natural, susceptível de se degradar pelos abismos da estupidificação?
No actual cenário, confesso, animou-me una frase de António Cabrita, retirada do seu livro de ensaios O Round Invisível entre Pessoa e Pascoaes, editado pela Poets and Dragons Society, em 2023: «Quando o primeiro robot se suicidar por decepção amorosa então considerarei que algo mudou e que as coordenadas da virtualidade expressiva da IA serão, como as nossas, inimitáveis». E esta é uma premissa na qual acreditei até hoje e gostaria de continuar a acreditar, seguindo também a ideia do filosofo Byung Chul Han, presente no livro Não-Coisas (2022) onde afirma: «o afetivo é essencial para o pensamento humano. A primeira imagem mental é a pele de galinha. Por esse motivo, a inteligência artificial não pode pensar, porque não fica com pele de galinha. Falta-lhe a dimensão afetivo-analógica, a emoção que os dados e a informação não conseguem reter.» (p. 45).
Com efeito, esta imagem da pele de galinha, ainda alheia às máquinas, continua a ser um porto de abrigo, uma espécie de rede de segurança, numa época em que os mapas da realidade se redesenham por agentes não humanos, capazes de gerar linguagem, imagens, decisões, impulsionados pela força motriz da simulação da criação, a rasgar limites entre inteligência e imaginação. Diante desse novo panorama, surge um emaranhado novelo, difícil de desenlear, onde se enredam o real, o virtual e o simbólico, ameaçando as raízes da comunicação, da criatividade, alicerces basilares da Arte. Um pouco por todo o lado, a preguiça de exercitar a inteligência natural, tão humana como a pele de galinha, cede espaço à artificial. E que fazer perante este panorama?
Na verdade, não podemos negar, nem ignorar este poder das tecnologias de IA que não só automatizam tarefas, mas também modelam modos de pensar, de fazer. Cada vez mais, um pouco por todo o lado, a Inteligência Artificial gera produtos que se podem confundir com os da imaginação humana — ainda que sejam fruto de padrões estatísticos e processamento de linguagem. Assim, mergulhamos sem querer e sem saber, numa floresta de enganos: as traduções automáticas, as análises textuais e outros trabalhos feitas pelo Chat GPT, a criação de notícias falsas, o artificio muitas vezes entendido como arte por humanos cada vez mais desprovidos de um sentido critico, de uma cultura e discernimento essenciais à separação do trigo do joio. A credibilidade da informação passa a depender de critérios ainda mais sofisticados de verificação. Como confiar no que se vê ou se lê, quando a própria origem do conteúdo se torna obscura? E como combater esta opacidade?
E a primeira resposta que me ocorre é através da cultura, da leitura, do conhecimento, da experiência, da nossa humana capacidade de adaptação, de resolução de problemas, de evolução, de imaginarmos, de criarmos, ancorados nos sentimentos, nos afectos, naquilo que nos define. Contudo, não podemos ignorar essa espécie de “novas musas” que também podem encantar, inspiradoras de textos padronizados, imbuídos da imitação do humano, mas importa estabelecer regras, padrões éticos bem definidos relativamente à sua programação, questionar os valores veiculados e os apagados por elas.
Em suma, importa manter viva a imaginação, a sua força vital, para que não naufrague nas ondas dos simulacros, para que não sucumba às garras domesticadoras da tirania tecnológica. Por conseguinte, insisto, o nosso desafio é essencialmente humano. É a nós que nos cabe controlar e compreender as máquinas que inventámos para que não nos convertamos em seus servidores. Por outro lado, urge mais do que nunca, desenvolvermos as características humanas, humanistas, a empatia, o amor, a amizade, a solidariedade, a ética, a integridade, a criação autêntica – enquanto um robot, em pele de galinha, não se converter num Romeu.
Artigo originalmente publicado no Jornal do Algarve, em 11 de Julho de 2025. A autora escreve segundo a norma ortográfica de 1945.