«Perante a evolução natural e irrecusável de qualquer língua, em vez de temer a inovação, as Academias e a sociedade devem molda-lá, encontrando um equilíbrio dinâmico que resista ao imobilismo purista e à rendição acrítica.»
O último livro de Arnaldo Niskier sobre «Inteligência Artificial Hoje» é um manancial de informações muito úteis e de reflexões muito oportunas incluídas no decurso de cem comentários pontuais publicados, desde 2023 até abril de 2025, em órgãos de comunicação com a amplitude e o estatuto d´O Globo, Folha de São Paulo e do Correio Brasiliense.
O poder de comunicação de Arnaldo Niskier – confirmado em mais de cem obras que se repartem através dos setores da educação, do ensino e da investigação histórica – permite-nos o conhecimento, a avaliação e a extensão galopante de uma das conquistas irrecusáveis do mundo do nosso tempo. Mas não deixa também de enumerar as advertências perante os riscos associados à Inteligência Artificial, tais como a apropriação indevida e indiscriminada da propriedade intelectual, a propagação de fake news, a ausência de respeito pelos valores humanos tais como a segurança, a equidade, a transparência e a privacidade.
Os receios, as dúvidas e as objeções que a propagação da Inteligência Artificial tem levantado foram expressos por cientistas eminentes reconhecidos com o Prémio Nobel [da Física em 2024]: John Hopfield e Ginton Hinton: «Se não houver controlo» – disse Hopfield – «pode ocorrer uma catástrofe», pois os desafios não se podem resumir a questões de ordem técnica, mas de natureza antropológica, social e política. Requerem formação ética e um compromisso de responsabilidade.
Também o Papa Francisco, nos debates desencadeados em junho de 2024, na reunião da cúpula do G7, que decorreu na Apúlia, manifestou objeções perante a eventualidade do homem se converter num processo para programar computadores. «O homem – acentuou o Pontífice – não se pode transformar num algoritmo. O homem deverá ser o sujeito e não o objeto desta revolução. O resultado positivo» – concluiu O Papa Francisco – «só será possível se formos capazes de agir de maneira responsável e de respeitar valores humanos fundamentais.»
Humanismo e civilização tecnológica
Estamos a viver um novo ciclo na história do mundo, cuja população ascendeu a oito biliões de habitantes e, segundo as estatísticas mais recentes, há 300 milhões que sofrem de forte depressão, de angústia inquietante, de crises emocionais inevitáveis. É impossível ficar indiferente às mudanças que vão surgindo, umas vezes com evidentes benefícios, outras repletas de contrariedades e incongruências.
Há, sem dúvida, metas a atingir não apenas na área das ciências , da medicina, da educação e do ensino, da literatura, das artes visuais, da economia, da justiça, das relações internacionais. Os grandes industriais e empresários do mundo mostram-se recetivos aos desafios que se multiplicam nos mais diversos domínios. Contudo, a requalificação profissional, os reajustamentos legislativos, o combate à fome e às desigualdades sociais e humanas destacam-se entre as prioridades.
Yuval Noah Harari escritor e ensaísta com os maiores êxitos editoriais das últimas décadas, refletiu todos estes aspetos, denunciando arrivismos descarados e manipulações revoltantes, no recente livro Nexus – uma breve história das redes da Informação, da Idade da Pedra à Inteligência Artificial.
Todavia, Isaac Asimov (1920-1992) – um dos mestres da ficção científica, e divulgação científica, foi mais frontal e conciso ao pronunciar-se acerca de matérias polémicas de inovação: «Se o conhecimento pode criar problemas, não é por meio da ignorância que podemos solucioná-los.»
Instituições de renome cultural e cívico, como a Academia Brasileira de Letras e a Academia das Ciências de Lisboa, estão a acompanhar a utilização imparável da Inteligência Artificial. Nesta conformidade, a Academia Brasileira de Letras decidiu confiar a Arnaldo Niskier a presidência da Comissão de Lexicologia e Lexicográfica. Duas vezes presidente da Academia e com um currículo a vários títulos notável, Arnaldo Niskier já introduzira, em 1986, um banco de dados extensivo em todos os sectores da Academia.
Recorde-se, entretanto, que Arnaldo Niskier logo no discurso de posse, em 1984, declarou perentoriamente: «Sempre houve uma componente técnica na natureza humana, da mesma forma que sempre coexistiram o instrumento e a linguagem. Se fosse necessário estabelecer uma ordem de precedência, diriamos que o humanismo, no que ele representa de espírito perquiridor, de busca do ideal da realização humana, precede a técnica, pois a ferramenta procede da palavra, do pensamento, da criação. O que se busca» – ponderou ainda Arnaldo Niskier – «é uma nova síntese que supere os antagonismos entre humanismo e civilização tecnológica. Nem o humanismo é um fim em si mesmo, contemplativo e estático, nem a civilização tecnológica deve subjugar o homem com suas ofertas desmedidas e, às vezes, desnecessárias.»
Cooperação entre as duas Academias
Idênticas funções estão a ser exercidas na Academia das Ciências por Ana Salgado, lexicógrafa e investigadora nas áreas das Ciências da Linguagem e das Humanidades Digitais. Líder do projeto de revisão da norma ISO 1951:2007; colaboradora do grupo DARIAH-EU Working Group Lexical Resources; colíder do WG1 da CA22126 – European Network On Lexical Innovation (ENEOLI).
O percurso de Ana Salgado, começou no departamento de Dicionários da Porto Editora, onde liderou vários trabalhos de referência. Atualmente, coordena os projetos lexicográficos da Academia das Ciências de Lisboa, onde, desde 2023, é presidente do Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa (ILLP). É ainda uma das editoras incumbidas da publicação do Thesaurus de Ciências da Terra, coordenado por Manuel Lemos de Sousa, catedrático da Universidade do Porto, académico efetivo e membro do Conselho Científico da Academia das Ciências.
A cooperação de ambas as Academias é urgente e é necessária. Tanto mais que a interação do Gemini Live – em vias de se tornar o cérebro dos smartphones – pode ser feita em dez idiomas, entre os quais a língua portuguesa. As interrogações são pertinentes: em que medida os desenvolvimentos da inteligência artificial são suscetíveis de atingir e desvirtuar a estrutura da língua (portuguesa, francesa, inglesa etc)? Corre-se o risco de perder o cunho de identidade? Como reagir em face de possíveis alternativas para incorporar as inovações no idioma falado e, sobretudo, no idioma escrito?
O excesso de zelo dos puristas
A defesa e valorização da língua portuguesa não podem resvalar no excesso de zelo dos puristas horrorizados com a introdução crescente dos francesismos e anglicismos. Um dos exemplos tristemente célebres é o livro Rol de Estrangeirismos [e Respetivas Correspondências em Português de Lei], da autoria do professor Francisco Júlio Martins Sequeira, publicado no auge do salazarismo.
Tinha por finalidade ser uma «obra de consulta fácil e de fácil manuseio, uma como cartilha para servir a quantos, desejosos de falar ou escrever em português de lei, procurem um guia adequado e de intentos seguros». Era ainda mais categórico. Destinava-se a «escorraçar, por sadio nacionalismo e por brio próprio, (...) os termos espúrios, desnecessários, impertinentes, anti portugueses».
Entre as inúmeras propostas sugeria: em vez de boxeur, "murrista" ou socador; de camionete, galera ou autocarroça; de casse-tête, porrete ou cacheira; de croissant, meia-lua; de derrapagem, escorregamento; de embraiagem, engate ou "engranzagem"; de hangar, telheiro ou trapiche; de toilette, atavios ou afeitamento; de mayonaise, salgalhada ou mistifório.
Da lista interminavel menciono ainda: em vez de chutar, pontapear; de jazz-band, «banda de pretos» ou «banda esquipática»; de smoking, jaqueta; de WC (water closet), privada, sentina ou latrina; de cocktail, cacharolete, e de John Bull, «João Touro».
Em cada uma destas alternativas estamos confrontados com o ridículo e o absurdo. A inventariação crítica, sistematizada por Arnaldo Niskier no livro sobre «Inteligência Artificial Hoje», cumpre a função de esclarecer o leitor sobre o rumo a seguir em matéria de língua portuguesa, num tempo marcado pelos avanços e os desafios da Inteligência artificial.
A competência do filólogo
Compete ao filólogo – ensina Antonio Houaiss – a defesa da sua língua natal, o estudo científico das outras línguas; a análise crítica das variantes, a organização de edições críticas para fixar a coisa significada.
Prémio Nobel da Literatura em 1956, o poeta espanhol Juan Ramon Jimenez (1881-1958), escreveu este poema que aprofunda a genealogia da palavra: «Filologia, dá-me/o nome exato das coisas./ Que a minha palavra seja/a própria coisa/ criada pela minha alma novamente!/ Que por mim cheguem todos/ os que não as conhecem, às coisas./ Que por mim vão todos/ esses que as amam, as coisas./ Filologia, dá-me o nome exato/ e teu e seu e meu das coisas.»
Perante a evolução natural e irrecusável de qualquer língua, em vez de temer a inovação, as Academias e a sociedade devem molda-lá, encontrando um equilíbrio dinâmico que resista ao imobilismo purista e à rendição acrítica. Assim, poderá garantir que a Inteligência Artificial sirva o homem e que a língua portuguesa, em toda a sua diversidade, continue a ser , em cada pais, um instrumento de identidade e diálogo plural.
Artigo cedido pelo autor ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa e também proposto para publicação no Jornal de Letras, do Rio de Janeiro.