«(...) Uma das grandes consequências do uso do masculino genérico é o apagar das mulheres na hHstória. (...)»
As mulheres não são uma minoria de quantidade, são uma minoria de poder. Ou seja, como escreve Criado Perez, «a verdadeira razão para excluirmos as mulheres é porque vemos os direitos de 50% da população como um interesse de minoria.» (Mulheres Invisíveis, pág. 306). Um dos problemas que, por muito que pareça superficial, é a origem de grandes desigualdades, é o uso do masculino genérico (também chamado de «masculino universal»): usar o género masculino por defeito, no singular ou plural.
Começo logo por referir que me recuso a usar “Homem” com letra maiúscula. Se é para representar a espécie humana, podemos escrever “Humanidade” que não perdemos anos de vida a escrever mais umas letras. O uso da palavra “Homem” não só torna as mulheres secundárias na história, ou até as elimina da equação, como já trouxe problemas na análise de estudos antropológicos.
Nesta crónica proponho-me a deixar claras algumas das implicações efetivas do uso do masculino universal, quer em situações imediatas de ação, quer na memória associativa prolongada – os chamados estereótipos que residem em todas, todes e todos nós de alguma forma.
Quando nos apercebemos destas implicações, a desigualdade de tratamento conforme o género torna-se mais gritante, pois estamos mais alerta para as consequências do uso do masculino universal. Quando estava a fazer a minha submissão para a Business School de uma universidade, deparei-me com papéis de inscrição só em masculino, com a presença constante de «o aluno», sem sequer com um /a, ou, no limite um (a) – não que fizesse uma diferença predominante como comprovam estudos, se o feminino aparece sempre em segundo (MI, pág. 25). Não me senti nada representada, parecia que aquela universidade nem me queria. Pois bem, se fosse para eu entrar, teria de ser tal e qual como sou. Portanto, imprimi os papéis todos de inscrição e cortei os “o” dos masculinos e escrevi “a”. (Entrei, já agora).
O uso do masculino por defeito traz consequências imediatas para as nossas vidas, desde questões mais pequenas contornáveis (que não deixam de ser problemas) a grandes falhas: «mulheres com frio no escritório, porque a temperatura está regulada para a norma térmica masculina»; «dificuldade em alcançar a prateleira superior regulada para a norma da altura masculina (cis)»; falhas graves em testes de laboratório por falta de clareza quanto ao sexo das pessoas sujeitas aos testes, resultando em anomalias atípicas de medicamentos em mulheres; falta de clareza em estudos antropológicos, pois não se sabe se estamos a falar de “homens” como o conjunto de pessoas de todos os géneros ou do sexo masculino; e ainda distorção de estudos científicos — um artigo de 2015 analisou o enviesamento até da autopercepção em estudos psicológicos por parte das mulheres, aquando da leitura das questões com masculino genérico. “As suas respostas eram afetadas, distorcendo o sentido dos resultados dos testes.” (Mulheres Invisíveis, de Carolina Criado Perez).
A mentira da História
A História do mundo é-nos contada por homens, escrita por homens, com a perspetiva de homens. «Está tudo marcado – desfigurado – por uma “presença ausente” de forma feminina. Um enorme desequilíbrio nos dados disponíveis: o défice informacional de género.»
Por exemplo, ensinam-nos que na Grécia Antiga nasceu a democracia, quando a metade feminina da população estava excluída das tomadas de decisão da política e sem direito a voto. Não foi berço nenhum da democracia. Poderíamos chamar-lhe, talvez, berço do pensamento crítico público dos homens. Mais à frente na História, lemos que o período entre os séculos XIV e XVII como “o Renascimento”, mas as mulheres continuavam excluídas da vida artística e profissional (Carol Travis, em The Mismeasure of Women). De seguida, o chamado de “Iluminismo”, que expandiu «os direitos do homem», não fez o mesmo pelos das mulheres, pelo contrário: foi-lhes negado o «controlo dos bens e dos rendimentos e o acesso à educação superior e formação profissional». (MI, pp. 31,32).
Indubitavelmente, uma das grandes consequências do uso do masculino genérico é o apagar das mulheres na história. Parece que nem nos lembramos que elas existem, porque não estão representadas em lado nenhum. Podemos afirmar que tal também aconteceu devido aos escritores de História terem sido maioritariamente homens. Neste caso, o ponto a focar seria a negação de escolaridade às mulheres por forma a silenciá-las e a privá-las de opinião pública e política. (Ver livro Women and Power, de Mary Beard).
Por muito que possa parecer uma consequência que reside na História do passado, as mulheres continuam a ser apagadas da História nos dias de hoje, com as suas conquistas ignoradas. Por exemplo, em 2013, Andy Murray, tenista britânico, foi congratulado pelos media por ter posto fim a «uma espera de 77 anos para que um britânico vencesse o torneio de Wimbledon», quando, na verdade, Virginia Wade já o tinha ganhado em 1977. Uns anos mais tarde, um jornalista desportivo disse a Murray que ele era «a primeira pessoa a ganhar duas medalhas olímpicas no ténis», quando Venus e Serena Williams tinham quatro cada uma. Felizmente, Murray corrigiu o jornalista com esta informação.
Na verdade, no desporto, para além de altas desigualdades salariais, não faltam exemplos de anulação das mulheres (e pessoas queer, mas esse assunto merece uma crónica por si só). Por exemplo, diz-se comummente nos EUA que a equipa de futebol nunca venceu o Campeonato Mundial, quando a equipa feminina já a venceu quatro vezes. Isto porque quando se fala da «equipa de futebol de um clube» procura-se referir automaticamente à masculina, mas para nomear a feminina escrevemos sempre “feminina” à frente. Ao anularmos a possível presença de uma equipa feminina – não se ouve dizer «a equipa de futebol masculina do Porto ganhou a Taça da Liga» –, anulamos a sua presença e esta denominação na linguagem passa a ser uma forma de exclusão.
Basta pensar que quando se diz «O Porto vai jogar contra o Benfica na Luz» depreende-se, automaticamente, de que se trata das equipas masculinas. Isto acontece em praticamente todos os desportos e em muitas outras áreas. Veja-se na língua inglesa quando se acrescenta o “lady” a cargos de género neutro mais comummente atribuídos a homens por defeito: “Lady Boss” (e o pior “Girl Boss”), Lady Lawyer, etc. É irritante porque, para além de uma condescendência, é uma forma de excluir as mulheres dos grupos dos advogados, chefes, etc. Fenómeno equiparável às designações de “Literatura Feminina” e “Literatura para Mulheres”.
Já que mencionei profissões, façamos uma análise de como as profissões são geralmente ensinadas, logo impregnadas de “profissões de homem” e “profissões de mulher”. Uma profissão é para quem tiver capacidades físicas e psicológicas para a ter. No entanto, quando se usa o masculino genérico, as pessoas tendem a lembrar-se mais de homens do que de mulheres.
Há uns anos organizei um workshop de ilustração para crianças na Reitoria da Universidade do Porto. As crianças foram convidadas a ilustrar profissões. De todas as crianças, só houve uma que foi contra estereótipos de género. Pessoas polícias e médicas eram sempre designadas como homens; professoras, enfermeiras, bailarinas designadas como mulheres. Quais as consequências? Pacientes que não confiam em médicas, preferem um médico; pessoas que acham que advogados homens são mais competentes só por serem homens; que uma mulher no escritório deve ser por defeito funcionária e não chefe. Outro resultado do uso do masculino universal é os diferentes desenlaces da mesma circunstância conforme o género: aumentam salários a homens porque têm família, mas diminuem proposta de salário a mulheres porque têm família – a primitiva lengalenga que um homem com família tem de ganhar mais dinheiro para a sustentar, mas uma mulher com família vai trabalhar menos porque é automaticamente a cuidadora… Não é por acaso de muitos empregadores ainda perguntam às mulheres – e não aos homens – em entrevistas de emprego, se elas são mães ou tencionam ser (por muito que já não seja legal perguntar).
Para piorar este panorama, “em 2012, um estudo do Fórum Económico Mundial descobriu que países em que se falam línguas com flexões de género – com ideias de masculino e feminino fortemente presentes em quase todos os enunciados – são também aqueles em que há mais desigualdades em termos de género” (MI, pág. 25).
Dar a volta na Linguagem
Há pessoas que acusam quem tenta dar a volta ao masculino genérico de estar a estragar a língua (Não só em Portugal, mas noutros países de língua de origem latina, como Espanha e França). «Porque o plural masculino já pressupõe que possam estar mulheres incluídas» dizem essas pessoas. Ora bem, pressupõe, não esclarece, ou seja, torna a presença das mulheres secundárias, anula até a sua presença. Para os puristas da língua, ide então usar o português antes dos diversos acordos ortográficos. Até deixo aqui o link para escolherem o acordo que acham mais purista, ou então façam um exorcismo a um dicionário atual, para mim tanto me faz. O que é relevante perceber é que a língua foi criada por pessoas, por isso pode e é mudada por pessoas. Senão, o latim não seria uma língua morta.
Mesmo assim, para a inclusão social total na linguagem, não basta usar os dois géneros binários. A partir do momento em que há pessoas não binárias – e sempre existiram, por muito que pudessem não o ser publicamente –, precisamos que a língua se adapte à sua existência, porque também é a língua delus. Assim nasceu o Sistema Elu. Num segundo nível, é preciso preparar também os corretores automáticos, que corrigem mais depressa para masculino que para feminino e não reconhecem o género neutro.
Há ainda quem utilize o “x” em vez do o/a em palavras, ou até a arroba (“@”). Este último falha ao excluir o género neutro e os dois falham pela falta de inclusividade digital das pessoas cegas que usam um sistema de leitura áudio de texto digital, que não consegue ler palavras com “x” ou “@”. O Sistema Elu, por usar letras na sua composição, ultrapassa este problema. Vejam-se agora algumas flexões do género neutro:
mesmos/ mesmas/ mesmes
deles/ delas/ delus
ele/ ela/ elu
lindo/ linda/ linde
Quem tem medo de mudança não evolui
Podem escolher não evoluir, mas não critiquem nem condicionem quem se atualiza, quem procura a inclusividade. A língua que usamos tem de ser uma língua passível de falar sobre toda a gente, com toda a gente. Se vos faz confusão o género neutro, porque *inserir aqui uma piada qualquer*, pelo menos que façam um esforço para incluir plurais masculinos e femininos. O mínimo é continuar a falar e escrever como bem vos apetecer, mas não incomodar quem escreve com inclusividade. Não vos tira nenhum pedaço. Na verdade, é com linguagem inclusiva que se consegue representar o bolo todo da sociedade e não só a fatiazinha de privilégio que é usada para a foto da publicidade do Mundo do Homem.
Livros referidos:
Mulheres Invisíveis — Como os Dados Configuram o Mundo Feito para os Homens, de Carolina Criado Perez
Women & Power — A Manifesto, de Mary Beard
Sugestão: Para quem for traduzir livros que falem sobre o problema do masculino genérico/universal, por favor não escrevam os grupos plurais de pessoas no geral com plurais masculinos. É completamente descabido e contraproducente.
Cf. A polémica expressão «pessoas que menstruam» + Nem todas as pessoas que menstruam são mulheres + “Mulher” é pouco inclusivo. E que tal “pessoa com vagina”?