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Controvérsias // O português do Brasil

A influência africana no português do Brasil

A propósito do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro

Por ocasião do Dia da Consciência Negra, decidi escrever este texto baseado no capítulo 4 do livro A língua do Brasil, do linguista Gladstone Chaves de Melo.

Ao discutir a influência africana na formação do português do Brasil, Gladstone Chaves de Melo (GCM) começa com um alerta fundamental: esse é um terreno cheio de paixões, e essas paixões — positivas ou negativas — costumam atrapalhar o senso crítico. É preciso cautela, sobriedade e ciência.

Feito esse aviso, ele apresenta três pontos que considera centrais para entender o tema.

1. A presença africana já vinha "embutida" no português trazido pelos colonizadores.
Antes mesmo de aportar no Brasil, os portugueses já conviviam com populações negras escravizadas na metrópole, no continente africano e em territórios sob influência árabe. Portanto, parte do léxico de origem africana que hoje consideramos brasileiro já existia na língua portuguesa desde o século XV. Exemplo clássico: inhame, que já aparece na Carta de Pero Vaz de Caminha.

2. A influência africana na norma popular brasileira foi mais forte que a indígena.
Segundo GCM, essa força se deveu ao contato profundo, cotidiano e afetivo entre portugueses e africanos. Lembre que crianças brancas eram amamentadas, cuidadas e socializadas por mulheres negras; e as primeiras impressões linguísticas, diz o autor, são as mais fortes e duráveis. Assim, muitos brasileiros aprenderam português, na primeira infância, a partir de modelos africanos.

Mas os africanos não aprenderam português escolarmente: aprenderam sob violência, improviso e urgência – o que, inevitavelmente, gerou simplificações estruturais nos domínios fonético, morfológico e sintático. A miscigenação racial veio acompanhada de uma miscigenação linguística na fala popular.

GCM, porém, ressalta sempre: nem tudo que se costuma chamar de "africanismo" é realmente africano. Muitos fenômenos populares são, na verdade, herdados de dialetos portugueses. Com o tempo, a escolarização de negros e mulatos (em busca de ascensão social) contribuiu para uma aproximação entre suas formas de falar e a norma culta de matriz portuguesa.

3. A forte hipótese dos crioulos africanos (especialmente o quimbundo).

O português popular foi influenciado por crioulos de base banto e iorubá. Entre eles, o quimbundo teria sido o mais expressivo, por sua difusão territorial e por seu caráter pouco flexional. Isso tende a explicar a simplificação das flexões no português popular brasileiro – um fenômeno natural quando falantes de línguas analíticas aprendem uma língua mais flexionada. GCM aponta isso como uma grande marca no PB.

Em várias regiões, formaram-se crioulos de base africana (nagô, quimbundo) e indígena (tupi), que depois se misturaram. No planalto paulista, teria surgido um crioulo tupi–quimbundo que, muito influenciado pelos portugueses, teria dado origem ao dialeto caipira. Esse dialeto se espalhou com as bandeiras e com a migração interna, ajudando a unir linguisticamente vastas áreas rurais. E tudo isso coincidiu com um grande influxo de portugueses no século XVIII, reforçando o caráter lusitano da língua.

Ainda assim, GCM insiste: muitos traços "ditos africanos" são, na verdade, portugueses.

Mas isso, óbvio, não elimina o papel da forte presença negra como elemento de resistência à completa homogeneização linguística do país.

Importante!

O que costuma ser atribuído à influência africana? GCM lista mais de 10 pontos e os examina criticamente. Vejamos:

1. Redução de flexões: este é, segundo ele, a influência africana mais profunda:
– plural só no determinante ("os menino", "as roupa");
– perda de desinências verbais ("eu compro" / "tu compra" / "nós compra");
– aglutinação do s («os homens» > "ozome");
– ausência de flexão quando o sujeito vem depois ("Chegou dez mulher").

Esses traços diminuem na medida em que a escolarização e a busca de ascensão social favorecem a aproximação com a norma culta. E GCM é explícito: o nivelamento linguístico deve ocorrer "por cima", não por baixo.

2. Clareza do e/o pretônicos: atribuída por alguns aos africanos, GCM prova que era traço do português do século XVI: "pessoa" < "p'ssoa", "menino" < "m'nino".
3. Musicalidade do PB: aqui, ele admite possível influência do quimbundo.
4. Semivocalização de lh (mulher > "muié"): comum nas línguas românicas; possível influência africana, mas não exclusiva.
5. Queda do l/r finais (amar > "amá"): fato românico, não africano.
6. Monotongação (peixe > "pexe"): também antiga e românica; atribuir aos africanos seria boa vontade excessiva.
7. Pretérito com -o (fizeram > "fizero"): já existia em dialetos de Portugal.
8. Redução do gerúndio (falando > "falano"): também de origem românica.
9. O suposto prefixo "ca-" (camundongo, calunga, caçula) – GCM desmonta a hipótese: essas palavras não funcionam como derivados com prefixo; são vocábulos inteiros, incorporados já prontos. E algumas nem expressam pequenez (calombo!). O mesmo vale para milonga, miçanga, mucama, quilombo, quitanda etc.
10. Colocação pronominal "à brasileira": não é africana, é herança portuguesa arcaica.
11. Regência «falar com alguém»: documentada desde o século XIII em Portugal.
12. Rotacismo: Flamengo > "Framengo", mesmo > "mermo". Já existia desde o latim e noutras línguas românicas.

Para finalizar, eis a conclusão geral de GCM:

A influência africana existiu, sim – mas de modo pontual na morfossintaxe (redução de flexões) e amplo no léxico (cerca de 300 vocábulos).

Ela não alterou a estrutura fundamental do português; ao contrário, enriqueceu o vocabulário, e as palavras africanas foram moldadas pela morfologia portuguesa (moleque > molecagem, batuque > batucada, angu > anguzeiro, congo > congado etc.).

GCM encerra com esperança: a escolarização e a mobilidade social tendem a reduzir os traços morfológicos herdados do período escravista, de pessoas com baixa ou nenhuma escolaridade.

E fecha com um recado que vale ouro, a ser lembrado hoje e em todos os dias do ano: fazer linguística exige rigor moral, isenção, obediência aos fatos, humildade para abandonar teorias queridas – que podem ser usadas como mote político-ideológico –, quando elas não resistem ao exame crítico dos fatos.

O respeito e a valorização do contributo africano são importantíssimos, mas ciência não se faz com preferências, gostos, ideologias ou parcialidades, e sim com fatos.

Para entender melhor o "pretuguês", amplio a questão aqui.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa