«A nova ortografia do português divide opiniões, mas entrou numa rota sem marcha-atrás», escreve-se neste texto publicado no Expresso de 14/04/2012, aqui transcrito na íntegra, com a devida vénia ao autor e ao semanário português. Leia-se também, no fim, os três textos complementares desta peça, Acordo mínimo, Datas para um acordo e A favor e contra.
Já não há margem para recuo na aplicação da nova ortografia do português. Deixou-o claro Francisco José Viegas, secretário de Estado da Cultura, em recente entrevista ao Expresso; confirmou-o há duas semanas, embora com reservas, a diplomacia angolana no final da reunião de ministros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP); e o Brasil prepara-se para a partir de janeiro dar início obrigatório à aplicação do Acordo Ortográfico (AO).
A entrada em vigor de uma lei não determina o fim das polémicas que possa suscitar e, por isso, é previsível que não só se mantenham como até cresçam os focos de resistência a um acordo visto pelos seus opositores como impreciso, omisso, arbitrário, carregado de opções facultativas e incapaz de cumprir a sua missão de contribuir para uma unificação ortográfica.
«Melhorias necessárias»
A reunião dos ministros da CPLP realizada em Luanda era aguardada com expectativa, visto Angola e Moçambique não se terem ainda decidido pela ratificação do AO e assumirem até uma posição de reserva. Mpinda Simão, ministro da Educação angolano, declarou no final do encontro que «a implementação do Acordo está dependente de algumas questões técnicas».
Não resulta daqui que Angola, frisou, ponha em causa o AO. Trata-se antes de assegurar a ultrapassagem de alguns «constrangimentos» com «a introdução das melhorias necessárias».
Na opinião de Maria Helena da Rocha Pereira, professora catedrática, responsável pela supervisão científica do vocabulário comum da língua portuguesa, elaborado no âmbito da Academia das Ciências de Lisboa1, em Angola «tem imperado a má informação sobre o novo AO» e só isso explicará a posição de reserva mantida pelas autoridades daquele país lusófono.
O modo como a aplicação do AO tem encalhado em Angola e Moçambique deixa preocupados os editores. Para Vasco Teixeira, responsável pela Porto Editora, principal grupo editorial português de livros escolares, «urge resolver este assunto em nome de uma estratégia global para a língua portuguesa».
Evanildo Bechara, uma das principais figuras da Academia Brasileira de Letras e autoridade máxima no Brasil no que respeita ao AO e às dúvidas que a sua aplicação possa suscitar, encara com naturalidade algumas preocupações manifestadas pelos países africanos de expressão portuguesa. O autor da Moderna Gramática Portuguesarefere que «algumas vozes africanas estão a querer que as palavras de origem africana se escrevam por exemplo com a utilização do k, o que não tem qualquer problema nos neologismos, mas já é mais complexo quando tradicionalmente já estão a ser escritas com qu».
A este propósito, Maria Helena Rocha Pereira chama a atenção para o facto de o AO passar a consagrar as letras k, we y como componentes do alfabeto português, o que vai ao encontro de algumas das exigências dos países africanos.
• Jornal de Angola critica
A questão continua a ser polémica e no início de fevereiro foi muito noticiado um editorial do Jornal de Angola no qual se exigia que ninguém «use impor regras só porque o difícil comércio das palavras assim o exige. (…) Os afetos não são transacionáveis. E a língua que veicula esses afetos muito menos».
Numa altura em que Angola detém a presidência rotativa da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), Georges Chicoti, ministro das Relações Exteriores daquele país, afirmou em Lisboa, no final da reunião do Conselho de Ministros da CPLP, efetuada em fevereiro, que os especialistas angolanos estavam a elaborar um trabalho de avaliação e de concertação do AO com os diferentes países da comunidade que já o ratificaram.
Moçambique tem seguido a posição angolana. Em declarações ao Expresso, Lourenço do Rosário, reitor da universidade A Politécnica, sublinha que o texto do AO «deve ser revisitado» e chama a atenção para a necessidade de o trabalho de elaboração do Vocabulário Ortográfico Comum «resultar da contribuição de cada país através dos Vocabulários Ortográficos Nacionais». A propósito das polémicas que têm rodeado o AO, o académico defende que «o assunto tem sido abordado de uma forma atabalhoada, com muita emoção, misturando sentimentos de ordem política e nacionalismos inconfessáveis sem curar da parte científica, nem da utilidade ou inutilidade do Acordo».
«Inútil» é como a catedrática e ex-ministra da Cultura Isabel Pires de Lima classifica o AO. Isto porque, diz, «sendo ortográfico, tem objetivos de uniformização ortográfica e não se vê em que é que uma uniformização contribui para a promoção da língua». Um dos seus argumentos contra o AO passa pela constatação de que as dificuldades existentes na leitura «decorrem de problemas morfossintáticos ou lexicais, mas o Acordo obriga-nos a não conviver com essa diversidade».
O problema, diz Isabel Pires de Lima, é que «em Portugal nunca se investiu na língua como património» e, por isso, a única vantagem que vê neste AO é do ponto de vista editorial para o Brasil, que vai poder dominar com mais facilidade o mercado editorial».
Os "donos" da língua
Favorável ao Acordo, o escritor e professor da Universidade de Brasília Marcos Bagno sente que os portugueses «se queixam de um suposto "abrasileiramento" da língua, mas de facto o sentimento que predomina nessa queixa», parece-lhe, «é a perda de controlo que Portugal sempre teve sobre os destinos do idioma, como se fosse o "dono" legítimo e exclusivo da língua».
Já o poeta brasileiro Régis Bonvicino defende que o AO «representa um empobrecimento da língua, porque a língua é a língua e suas muitas variantes». Agastado por sentir que o Acordo «foi imposto aos brasileiros pelas grandes editoras comerciais» e porque «não houve reflexão nem discussão», Régis é antes de mais favorável à pluralidade do português, que vê ameaçada por este AO.
Evanildo Bechara, e ao contrário do que pensará a generalidade dos portugueses, garante que «os brasileiros têm muito mais mudanças», algumas com grande impacto porque «alteram hábitos de pronúncia», visto desaparecer o trema e ocorrerem muitas alterações ao nível dos acentos. Sabe que no Brasil, tal como em Portugal, nem toda a gente aceita o AO, mas, conclui, «isso é inevitável», porque uma nova ortografia é sempre um instrumento pensado sobretudo para as próximas gerações e não tanto para quem vive hoje o dia a dia da língua.
1 N. E. – De todo desconhecido, até à data, que a Academia das Ciências de Lisboa tenha em mãos a elaboração de vocabulário comum. Tão mais surpreendente por ser uma iniciativa, que se saiba, sem a participação dos demais países lusófonos e ao arrepio do que está a ser feito no âmbito do Instituto Internacional da Língua Portuguesa.
Acordo mínimo
Há um exercício interessante e útil a fazer por adeptos ou opositores do Acordo Ortográfico (AO). Consiste em pegar num qualquer jornal e iniciar a sua leitura de modo a perceber se a publicação está ou não a aplicar o AO.
Depressa se concluirá que não é uma tarefa de resultados evidentes e imediatos.
É possível chegar ao final do artigo sem qualquer conclusão. Neste texto, por exemplo, aparecerão apenas duas palavras (afetadas e exceções) alteradas devido à aplicação do AO. Isto acontece porque a percentagem de palavras afetadas é ínfima em relação ao universo de termos que constituem uma língua.
No caso do português foram alteradas 1,55% das mais de duzentas mil entradas do vocabulário ortográfico.
No Brasil as mudanças não chegam a 1%. O argumento da quantidade não comove os opositores do AO, sobretudo preocupados com o que consideram ser o brutal impacto na estrutura da língua provocado pelas mudanças propostas.
O sistema de ensino, as instituições públicas, as principais editoras, parte importante dos jornais, estão já a praticar o AO.
Há exceções, umas por inércia, outras por ainda haver tempo, e outras ainda por uma recusa militante. No caso dos principais órgãos de comunicação social, as revistas Visão e Exame, a agência Lusa, os jornais Expresso, Jornal de Notícias, Diário de Notícias, O Jogo, Record, A Bola, ou as estações de televisão RTP, SIC e TVI já estão a aplicar o AO.
Instituições culturais como a Casa da Música, Fundação de Serralves, CCB ou Fundação Calouste Gulbenkian ainda não o aplicam, em geral por saberem que poderão fazê-lo até 2014. No caso de Serralves, porém, o AO já é aplicado nos serviços educativos. Para lá da posição que cada um possa ter sobre o AO, há já um ganho indiscutível. A sociedade reintroduziu nos debates do dia a dia as questões da ortografia do português.
V.C.
Datas para um Acordo
• 1990 (dezembro). Sete países de língua oficial portuguesa assinam o Acordo Ortográfico.
• 1991 (agosto). Portugal ratifica o AO, que deveria entrar em vigor em 1 de janeiro de 1994.
• 1996. O AO está ratificado por Portugal, Brasil e Cabo Verde.
• 2004. Protocolo Modificativo do AO segundo o qual basta a ratificação por três países para que o AO entre em vigor.
• 2008. A Assembleia da República Portuguesa aprova o Segundo Protocolo Modificativo do AO.
• O PR ratifica o AO.
• 2009. Entrada em vigor do AO em 13 de maio. No Brasil, a quase totalidade dos órgãos de comunicação social passa a aplicar o AO.
• 2010 Guiné-Bissau ratifica o AO.
Faltam apenas Angola e Moçambique.
• 2011. O AO é adotado por todos os serviços do Estado e é introduzido no sistema educativo português no ano letivo 2011/2012.
• 2012 (1 de janeiro). Começa em Portugal o período de transição para a aplicação do AO.
• 2013. O AO passa a ser de aplicação obrigatória no Brasil.
• 2015. O AO passa a ter aplicação obrigatória em Portugal.
A.C.
A favor e contra
A favor
• Aproxima a escrita da oralidade,
• Simplifica o ensino e a aprendizagem.
• A percentagem de vocábulos alterada é mínima: 1,6% em Portugal, menos de 1% no Brasil.
• A criação de um vocabulário ortográfico comum vai permitir resolver inconsistências na aplicação das regras ortográficas que sempre existiram.
• As regras da escrita são pela primeira vez unificadas num documento comum.
• Facilitará a cooperação dos países da CPLP na área educativa.
Contra
• Anula as diversidades da língua.
• Desrespeita a etimologia das palavras.
• Tem muitos erros técnicos.
• Admite um grande número de duplas grafias.
• Constitui uma cedência à ortografia brasileira.
• Cria situações confusas devido à queda das consoantes mudas e às alterações na acentuação e na hifenização.
• É um processo caro por obrigar à revisão e nova publicação de materiais didáticos, dicionários e outras obras escritas.
V.C.
Texto publicado no jornal Expresso de 14 de abril de 2012