Hoje em dia as livrarias por essa Europa fora já não têm só dicionários bilingues de português. Em vez do francês-português ou do italiano-português, a tendência recente é para o francês-brasileiro ou para o italiano-brasileiro. Eu, que gosto muito da literatura e do jornalismo brasileiro, que aprecio a forma como os brasileiros transformaram o português velho e chato que falamos, fico um pouco chocado. Tenho uma amiga italiana que me diz que não está nem quer aprender português; está a aprender brasileiro. E o seu dicionário de bolso confirma-o. Há com certeza muitas razões para que isto se passe, para que muitos europeus prefiram mentalmente o brasileiro ao português, ao ponto de pensarem que têm de escolher entre um e outro. O Brasil criou uma cultura popular própria, espontânea e festiva, que tem exportado para o resto do mundo com apreciável sucesso. Nós, portugueses, somos mais apagados, não fazemos tanto estrondo e ninguém nos vê como um produto apetecível. Um mundo obcecado com o ludismo e com a euforia preferirá sempre o samba ao fado. Agora, só há uma língua, o português, e parece-me óbvio que alguma coisa anda a falhar.
O acordo ortográfico que Portugal assinou há mais de 15 anos e nunca ratificou tem tudo a ver com esta cisão entre o português e o brasileiro. A forma como o Brasil projecta a língua portuguesa no mundo é, gostemos ou não, incomparavelmente superior à que está ao nosso alcance. Havendo uma língua única, devemos perguntar se será sensato insistir numa divisão desnecessária e complicativa das regras ortográficas dos dois países. É certo que a ortografia é, acima de tudo, uma aprendizagem. Talvez nenhum acordo ou voluntarismo altere facilmente a maneira como escrevemos. Acho que quem não se vê a escrever úmido, excetuando ou ótimo porque nunca aprendeu a escrever assim, usa um argumento sério. Uma língua faz-se de códigos e normas que se aprendem e se transmitem como dados adquiridos. No entanto, quando se sabe que as actas das reuniões da CPLP são feitas em duas línguas ou que é preciso fazer traduções portuguesas de obras brasileiras só porque nós escrevemos acção e eles ação, a pergunta que fica é qual a racionalidade de tudo isto. O acordo ortográfico não vem salvar, uniformizar ou destruir a língua portuguesa. Até porque a língua portuguesa não precisa de ser salva, nem pode ser destruída. O interesse do acordo é, no essencial, prático.
Continuaremos a dizer giro sem que os brasileiros nos percebam, tal como os brasileiros continuarão a falar em propinas sem que estejam a referir-se às nossas propinas. Uma língua comum é feita de várias tonalidades. Pode ser que assim a minha amiga italiana se decida pelo português.
in Diário de Notícias, de 13 de Dezembro de 2007