O carácter tão ostensivamente prudencial como os deputados se pronunciaram (alguns insistindo que falavam a título meramente pessoal) terá talvez a ver com o brilhantismo dos dois convidados especiais da audição parlamentar — Vasco Graça Moura e o catedrático de Coimbra e reitor da Universidade Aberta, Carlos Reis.
Eurodeputado do PSD, escritor («esteta da escrita», chamou-lhe Teresa Portugal), Graça Moura não poupou palavras no ataque ao documento. A começar no título da intervenção — «Acordo ortográfico: a perspectiva do desastre». E a continuar nas intenções ocultas que nele descortina — «decerto à revelia das melhores intenções dos negociadores portugueses, o Acordo (...) serve interesses geopolíticos e empresariais brasileiros, em detrimento de interesses inalienáveis dos demais falantes de português no mundo», em especial de Portugal, e representa «uma lesão inaceitável de um capital simbólico acumulado e de projecção planetária».
Vasco Graça Moura distribuiu pelo documento críticas de carácter jurídico (para o Acordo vigorar na ordem interna portuguesa não lhe bastam a aprovação parlamentar e a ratificação do Presidente da República — necessita de «ter assegurada a sua vigência no ordenamento internacional», algo que está longe de acontecer pois foi ratificado até agora por três dos oito Estados de língua portuguesa); de carácter processual (o Governo «não consultou nenhuma Universidade, nem o Conselho de Reitores, nem a Associação Portuguesa de Escritores, nem a Sociedade da Língua Portuguesa») e, sobretudo, de carácter técnico.
Os defensores do Acordo, disse, não deram resposta até hoje «a nenhuma das críticas científicas» formuladas por linguistas. «O único objectivo real de toda a negociação do Acordo», acusa, foi o de suprimir as consoantes mudas ou não articuladas "c" e "p", o que levará a «homogeneizar integralmente a grafia portuguesa com a brasileira (...) desfigurando a escrita, a pronúncia e a língua que são as nossas».
Carlos Reis avançou logo com uma «declaração de desinteresses» seguida de outra de «interesses»: «Não tenho dependências económicas nem cumplicidades políticas; a minha única preocupação é com a Língua Portuguesa como idioma dividido por oito países.»
O que está em causa neste acordo ortográfico, disse, «é aproximar o modo como escrevemos do modo como falamos (...). Há alguma ofensa cultural se passo a escrever "elétrico" em vez de "eléctrico"?», perguntou, numa rajada de interrogações em que quis saber se Portugal se deve manter agarrado a uma «concepção conservadora da ortografia»; se serão os interesses das editoras «absolutamente determinantes para condicionarem decisões de amplo alcance a alargado espectro cultural»; se «podem alguns portugueses persistir em encarar o Brasil como um parceiro menor neste processo ou até como um inimigo»; e se Portugal tem o direito de colocar obstáculos, «as mais das vezes artificiais ou fundados em interesses económicos, a um entendimento que não afecta identidades nem legítimas singularidades linguísticas».
in Público do dia 8 de Abril de 2008