«(...) Será possível aperfeiçoá-lo para o adaptar melhor ao português europeu, dada a ineficácia da ACL na altura em que foi “implantado” no ensino. Mas revogá-lo, já não. (...)»
[Ver também: Acordo Ortográfico sob polémica presidencial]
Soube-se que o atual titular da Presidência da República, Professor Marcelo Rebelo de Sousa, usa a norma ortográfica de 1945 nos seus textos não institucionais. Correu a notícia de que, se Moçambique e Angola não ratificassem o AO90, o Professor defenderia uma nova discussão sobre o AO90.
Então, quem se opõe tenazmente ao AO90 ficou a pensar que haveria possibilidade de revogar a sua entrada em vigor, e passarmos outra vez à norma ortográfica antiga.
Venho afirmar que essa expectativa é já irrealizável.
1. Histórico
Depois da Reforma Ortográfica de 1911 em Portugal, o Brasil sentiu-se inconformado por ter ficado de fora e desejou maior entendimento na língua. Já tinha enveredado por algumas simplificações, mas o seu Vocabulário de 1943 ainda foi baseado no excelente trabalho da Academia das Ciências de Lisboa (ACL), nessa data muito prestigiada em todo o mundo de língua portuguesa.
O reconhecimento desse prestígio da ACL e dos seus linguistas, nomeadamente Rebelo Gonçalves, levou ao Acordo Ortográfico de 1945, com a assinatura do Brasil. Só que, passado pouco tempo, as elites brasileiras verificaram que, nesse Acordo, algumas simplificações na língua, já em vigor no seu país, e prometidas antes por Portugal, não tinham, afinal, sido respeitadas.
Por exemplo, nas supressões das consoantes não articuladas o Acordo de 1945 lá vinha com a determinação imperativa: «Conservam-se ..... nos casos em que ..... ocorrem em seu favor outras razões, como a tradição ortográfica, a similaridade do português com as demais línguas românicas .....»; o que obrigava o Brasil a repor consoantes já eliminadas na sua escrita corrente. Compreende-se que, depois de se habituarem a um língua mais simplificada, os brasileiros tivessem recusado voltar à ortografia anterior.
Os linguistas bem-intencionados dos dois países, a que se juntaram os de Angola, Cabo Verde, Moçambique e S. Tomé e Príncipe, tentaram em 1986 apresentar um Projeto verdadeiramente unificador na língua. Por exemplo, para resolver as diferenças de timbre entre Portugal e o Brasil com os acentos de algumas esdrúxulas, simplesmente retiravam-se os acentos em todas. Esta medida não era bem uma novidade, mas o problema com o cágado e outros foi um escândalo. A verdade é que o Projeto era excessivamente drástico, com retornos da grafia sobre a fonia inaceitáveis.
Sem desistir, os linguistas elaboraram "uma versão menos forte", espécie de compromisso, na "mistura" entre a Norma de 1945 e o Projeto de 1986:
2. O AO90
Esta “boa intenção” não convenceu lá muito bem e esteve fechada na gaveta durante cerca de 20 anos. Até que o autor começou a sentir que entre os linguistas brasileiros havia um desejo acentuado de unificar a língua. Talvez não fosse para evitar que vencesse a corrente que no Brasil defendia a existência de uma língua brasileira, mas era certamente porque se haviam formado dois blocos numerosos distintos na língua, Brasil num lado e Portugal mais os PALOP no outro, o que não agradava politicamente ao Brasil, ansioso por ter uma língua universal, já com os seus cerca de 200 milhões de falantes e uma importância crescente na economia mundial.
Num colóquio sobre a comum língua, onde estava presente um reputado académico da Academia Brasileira de Letras (ABL), o autor ainda pediu que o Brasil esperasse até que Portugal tivesse um vocabulário para o AO90. Espera que se avizinhava para as calendas, e, por isso, o Brasil não esperou. Em 2009, a ABL publicou um monumental vocabulário com 350 000 entradas para o AO90, e o Brasil decretou que o AO90 passasse a ser aplicado no ensino, com entrada em vigor geral no país 2 anos depois (mais tarde prolongada para 2016).
Os responsáveis portugueses ficaram alarmados nessa altura. Quiseram pôr o Acordo em vigor em Portugal mesmo sem vocabulário adequado, o que era uma tolice. Quando Cabo Verde alinhou como o Brasil, o pânico generalizou-se, e apareceram vários vocabulários, alguns com fraca qualidade, outros com interpretações discricionárias do texto do AO90. Até que a Resolução do Conselho de Ministros 8/2011 pôs, sem mais análises, o AO90 em funcionamento nas escolas e na Administração, com uma moratória até entrar em vigor definitivo, o que aconteceu em meados de 2015.
Ou seja, já lá vão vários anos de aplicação do AO90 quer em Portugal quer no Brasil, com uso generalizado, não só no ensino mas na comunicação social. Pode haver ilusões de se poder agora revogar o AO90 em Portugal?
Será possível aperfeiçoá-lo para o adaptar melhor ao português europeu, dada a ineficácia da ACL na altura em que foi “implantado” no ensino. Mas revogá-lo, já não.
Quem se habituou a escrever com uma ortografia mais simplificada já não aceita voltar à mais complexa. Aconteceu no Brasil como vimos, aconteceria em Portugal, sobretudo nos estratos mais jovens da sociedade. Porque, independentemente de alguns dislates para o português europeu, dado o pouco tempo de sedimentação na “mistura” e a pretensa bandeira fonética preferencial (em rigor não exclusiva, nem o pode ser porque dividiria os falantes, em vez de os unir), ...a verdade é que o texto do AO90 simplifica a ortografia em muitos casos nos quais a complexidade já é meramente histórica (por exemplo, nas consoantes desnecessárias, como: exatidão, correto, ótimo, etc.; em vários casos nos hífenes, como: coopositor, contrarregra, autoestrada, etc.). Podemos condenar as escolhas de vocabulários nos quais imponderadamente se perdem virtualidades na língua numa simplificação excessiva para o português europeu, mas quando a simplificação é manifestamente útil, já não é possível voltar a complicar, depois de todos estes anos com a nova escrita.
Claro que quem se opõe ao AO90 poderá continuar a escrever na Norma de 1945. Em democracia, não é legítimo proibi-lo e não é cortês acusar essa escolha de ignorância sobre as novas regras, ou de que não as quer aprender (regras, aliás, reduzidas e simples). Digamos que os defensores da escrita anterior são saudosistas dos bons valores do passado. Mas esses valores remontam a que passado?
Vamos supor, por absurdo, critério possível na investigação, que a corrente saudosista tinha conseguido vencer a reforma revolucionária de 1911 e que essa corrente permanecia dominante na ditadura de Salazar, impedindo também mudanças substanciais na língua, como as que a Norma de 1945 implicava.
Então, neste século XXI, poder-se-iam encontrar ainda grafias ortográficas remotas, algumas frequentemente referidas como exemplo, e possíveis respetivas justificações, como:
Sciência (é com sc inicial que estamos em presença da verdadeira sciência, que já vem da Antiguidade greco-latina).
Ennovelar (repare-se que é o segundo n que dá mesmo a ideia de novelo, nesta sugestiva palavra).
Pharmácia (sem o ph e com f, a palavra farmácia perde dignidade e já nem parece mesmo designar uma respeitável pharmácia).
Abysmo (reparemos que é este y, impressivo na palavra, que lhe dá o seu caráter abismal...).
3. Conclusão
Resumindo, a grande Reforma Ortográfica de 1911 obedeceu, já nessa data, ao critério expresso: «princípio capital da simplificação». Ora esse princípio capital, embora ensombrado agora com a tónica excessiva no critério fonético e, por isso, impondo melhoramentos, também esteve presente no AO90. Um mérito que não se pode negar, e que o bom senso dos falantes certamente não desejará perder.
Nesta data, o AO90 está em vigor em Portugal, Brasil, Timor-Leste, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Em Moçambique já foi aprovado pelo respetivo Parlamento, mas ainda não foi ratificado; por outro lado, já foi ratificado na Guiné-Bissau, mas ainda não aplicado.
Pode-se dizer que na Lusofonia só falta Angola tomar uma decisão definitiva sobre o AO90. Contudo, em Abril pp., foi afirmado oficialmente neste país que, embora falte o Vocabulário Nacional em estudo e a retificação de Bases carentes de informação técnico-científica, ...Angola não está parada na ratificação do AO90.
Independentemente das simplificações que já não se dispensam, o AO90 é irreversível, mesmo do ponto de vista das nossas responsabilidades na CPLP. Aliás, consta que a Academia das Ciências de Lisboa, presentemente com o Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa muito ativo, só o que deseja é fazer aperfeiçoamentos, não revogar o AO90. Como o autor.