— São os anos do Rodrigo e a gente faz o que ele quiser. Foi o que eu disse e é o que se faz. Agora calas-te e andas para a frente. E cara alegre e não arrastas os pés.
— Porque é que hadem estar sempre a discutir, mesmo no dia dos meus anos?
— Olha-me aquele — disse o pai — parece o Guilherme nosso vizinho. Só lhe falta o boné.
Todos se riram a olhar para o peixe vermelho, até o Rolando, embora contrariado.
— Fechastes o carro? — perguntou a mãe.
— Tudo sobre controle — disse o pai.
— Não te debruces, Rodrigo Tiago, parece que fazes de propósito!
Os peixes rebolavam pela água esverdeada. Estavam muito feitos a serem visitados. O Rodrigo queria perguntar ao pai como é que eles conseguiam ver, só com um olho de cada lado da cabeça. Mas teve medo que ele empreendesse uma explicação demorada e agora queria mais que tudo despachar-se. E teve sorte, porque não havia muita gente a querer entrar no Aquário Vasco da Gama.
— Tens dinheiro destrocado? — perguntou a mãe. E o pai tirou da carteira uma nota de mil e deu-a ao guarda. O Rolando ficou de costas, distraído a olhar para a montra das caixas envernizadas e de cavalos marinhos para sempre empertigados. Entraram pelas anémonas logo a seguir.
— Isto é que era uma coisa boa lá para casa — disse o pai. — Esta luz que só acende enquanto a gente carrega no botão. Era um grande poupar de energia. — Depois leu: — Anemonia Sulcata, nome vulgar, anémona.
— A cabeleira delas até parece a do Rolando - disse a mãe a querer brincar. E logo, para o Rodrigo:
— Não lambuzes o vidro, pá, que é poribido. Ainda vem aí o homem e nos põe a todos fora.
— Ih, mãe, olha-me esta lula! — gritou o Rodrigo. — Olha-me esta lula!
Ficaram todos pasmados com a lula gigante.
— Isto dava uma caldeirada para uma casa de família — disse o pai. E leu depois, no cartaz iluminado: — Oito metros e vinte e duzentos e sete quilos! Os olhos têm vinte e cinco centímetros de diâmetro...
— A oitocentos paus o quilo — calculou a mãe — vê lá tu quanto é que aí não está de lulas.
— Assim congelada é capaz de ser mais barato - disse o pai.
Foram pelo corredor conscienciosos, acendendo luzes, espreitando anémonas e cavalos marinhos, juntando as cabecinhas sobre as janelinhas redondas dos aquários. O Rolando acompanhava à distância, como se não lhes pertencesse, de mãos nos bolsos, deitando olhares descomprometidos aos espécimes quando não podia mesmo deixar de ser, absorto num grave problema íntimo que nenhuma visita, nenhuma festa, nenhuma palavra podiam resolver. Depois começavam os peixes.
— Olha-me aquele todo às pintinhas. Ó pai, podemos ter um?
— Isto não são uns peixes quaisquers, não se arranjam assim do pé para a mão — explicou o pai. — Se calhar há para aí um ou dois no mundo inteiro.
— São muito feios os peixes — disse a mãe. — Têm um ar muito estúpido.
— Há quem diga que vimos deles, sabias? — disse o pai ao Rodrigo.
— Só se fores tu, eu cá não venho com certeza. Uma vez a minha madrinha até me quis dar um peixinho vermelho, mas aquilo fazia-me espécie, a criatura às voltas no frasco, deitei-o pela pia abaixo.
— Deitastes fora o peixe? — perguntou o pai, incrédulo.
— Era pequena - disse a mãe. — Coisas da minha madrinha.
Assim dizendo chegaram a uma grande sala. No tanque havia tartarugas. O Rodrigo debruçou-se para ver.
— Ó pai, que grandes cágados! O Pedro tem um, mas é pequeno. E aqueles ali, que é que eles estão a fazer?
O pai e a mãe olharam para as duas tartarugas que o menino apontara.
— Não são coisas para a tua idade — disse a mãe. — Sai lá daí.
O Rolando aproximou-se, porque de repente sentira uma grande motivação para ver tartarugas. Encostou-se ao muro que rodeava o tanque, repousou a cara na mão direita e observou desapaixonadamente o namoro daqueles bichos.
— Mas eu já sou crescido — ripostou o Rodrigo. — Já vi na Televisão.
Viraram à direita e puseram-se a subir para as focas. Abrandavam o passo porque o Rolando não descolava do tanque educativo e também porque ainda era cedo para o almoço e, pelo andar da carruagem, calculavam que não houvesse ali muito mais para ver.
Na sala das otárias, a mãe deixou-se embevecer pela decoração marinha de conchas e barrocos búzios.
— Isto está um luxo, já viste? Está lindo. E, para o Rolando, que chegava: — Hades ficar sempre para trás e andares de trombas. Nem nos anos do teu irmão nos fazes o favor de estares contente, !
— Agora por poças — disse o pai com o seu ar das festas, pegando no Rodrigo ao colo para lhe mostrar as focas. — Lembro-me de andar um dia na pesca com o meu tio Olindo...
— Lá vem a história do tio Olindo! — suspirou a mãe a rebolar os olhos.
— ... e não pescávamos nada, estivemos para ali a manhã toda e nada, até que ele resolveu ir mais para baixo no rio, onde a água ia com mais força...
— Deixa lá os promenores e despacha-te — disse a mãe, admirando ainda as convolutas da decoração da sala.
— ...e eu a ver, era pequeno, tinha para aí a tua idade. Bom, vai o tio Olindo por ali abaixo, chega onde a corrente era mais forte e posta-se de perna aberta e lança o isco e fica à espera. A certa altura só o vejo começar assim como que a dançar, levantava uma perna, depois outra e eu pensei que ele estava todo contente porque tinha apanhado algum, mas não. Depois vejo-o cair estatelado dentro de água, ao comprido.
— Ih, que giro! — disse o Rodrigo.
— Tinha-lhe entrado uma rã para a galocha e estava-lhe a fazer uma comichão danada. Então caiu na água... Bom, mas o melhor foi que o tio Olindo se despiu todo e ficou só em ceroulas e pôs a roupa a secar numa pedra e vieram uns miúdos e roubaram-lhe tudo.
O Rolando emprestava àquela história uma orelha meio ausente. Conhecia de cor a história do tio Olindo, lembrava-se de ouvir o pai contá-la em casamentos e baptizados da família, com um copito a mais, e quando o Rodrigo, depois de ter estado muito doente em bebé, saíra finalmente do Hospital. No carro, na viagem para casa, com o Rodrigo no colo, o pai contara a história do tio Olindo e a mãe chorara a rir.
Agora só o Rodrigo é que se ria a ouvir o pai.
— Bom, mas não acaba aqui — disse o pai. — Do que eu mais gosto de me lembrar é do meu tio Olindo, muito gordo, todo nu só com as ceroulas, descalço a passear-se todo contente pela aldeia, de cana de pesca ao ombro e a rir-se para as mulheres que chegavam à porta e se benziam como se tivessem visto o diabo.
— Era muito bom homem, o tio Olindo — concedeu a mãe. — Já lá está, coitado.
— Ó pai, como é que se dá de comer às enguias eléctricas? — perguntou o Rodrigo. Mas o pai ainda estava com a memória noutro lado, enquanto lia no cartaz:
— Descargas de duzentos a trezentos volts, é o mesmo que pôr a mão na tomada.
— Isto está visto — disse a mãe, e começou a descer para o tanque das tartarugas, que controlou. — Estou farto de le dizer para não pôr tanta porcaria nos bolsos, que me deforma as Levis — queixou-se ela, a ninguém em especial — depois é, ó mãe quero uns Nike, ó mãe quero umas Lois, e rebenta com tudo... Levanta os pés, Rolando Bruno!
Portanto, a mãe estava a ficar com fome. Ainda bem que tinha chegado a uma sala cheia de peixes comestíveis.
— Ele é bacalhau, ele é garoupa, cherne, badejo! Anchovas, pargo, polvo! Só faltam as batatas e os grelos! — disse o pai.
Riram-se.
— Não se percebe nada! — disse a mãe. — Mas que vigarice, desde quando é que bacalhau é peixe de aquário? — Se tivéssemos azeite, almoçava-se já aqui!
— Ih! — gritou o Rodrigo — olha-me só a tromba daquele!
Mas os pais tinham parado diante de um cardume de peixinhos vermelhos e a mãe encostara a ponta do dedo indicador ao vidro. Ficara sonhadora, depois o pai afastara-se e premira o botão da luz noutro aquário.
— Apogon Imberbis — leu em voz alta, para o resto dos visitantes — «a fêmea expele os ovos (envoltos numa substância gelatinosa que os mantém unidos num aglomerado), que vão ser incubados na boca do macho; este jejua até ao nascimento das larvas, expelindo-as então»...
— Que porcaria! — disse a mãe. — Lembram-se de cada uma!
Poderia-se lá pensar.
Nessa noite, ao adormecer, no fim do dia em que fez cinco anos, o Rodrigo lembrou-se dos peixes, perguntou-se como podiam respirar debaixo de água. Mas quando a mãe lhe perguntou, dando-lhe um beijo de boa-noite, o que é que ele tinha gostado mais de ver, respondeu:
— Do que eu gostei mais foi do bolo de chocolate do restaurante. Aqueles ossos não comi, mas o bolo era bem bom.
A mãe também estava já farta de peixes. O pai demorava-se a ler as legendas, o Rolando não conseguia disfarçar a impaciência, batia com as biqueiras dos ténis no chão, ora uma, ora outra e assobiava entre dentes.
— Não sei porquéque hades estar sempre a fazer isso — disse a mãe ao Rolando. — Estragas os sapatos todos.
— Não é hades, é hás-de¹ — disse, por fim, o Rolando.
Os outros três estacaram, ficaram parados a olhá-lo. O Rolando mudou o peso do corpo para a outra perna, cruzou os braços sobre o peito e repetiu, numa ameaça:
— Não é hades, é hás-de.
¹ Cf. Hás de ou hás-de?
in Contos Outra Vez, 1997, Edições Cotovia, 1997, da autoria da escritora portuguesa Luísa Costa Gomes. Prémio Camilo Castelo Branco da Associação Portuguesa de Escritores, 1998.