« (...) O que sabe você [Sérgio Rodrigues] de Portugal? Quantas vezes cá veio, por onde andou, que autores nossos leu? Olhe, eu fui 57 vezes ao Brasil e nunca me canso de voltar. (...)»
Numa longa, repetitiva e monotemática entrevista, aqui, na última Revista do Expresso, Sérgio Rodrigues, apresentado como escritor, jornalista especializado na língua portuguesa e colunista da Folha de S. Paulo, queixa-se de nós por três razões: porque lhe roubamos o gerúndio nas entrevistas que nos dá, aportuguesando o seu brasileiro, coisa que ele acha «um abuso»; porque o mesmo lhe “consta” que fazemos aqui com os livros dos autores brasileiros, enquanto que lá não fazem o mesmo aos autores portugueses; e porque, finalmente e deliberadamente, os portugueses não querem ler autores brasileiros. Seis páginas de queixinhas assentes em falsidades, invenções e suposições, ditadas por uma imaginação pouco jornalística, ajudada por uma entrevistadora, não só compreensiva, como também inspiradora. Vejamos.
Quanto às entrevistas, é simples: é o critério do entrevistador ou do jornal ou revista. Diz-me a experiência que aqui, nuns casos "traduzem" o português do Brasil do entrevistado, noutros deixam-no correr livremente, como é o caso desta, pois que, ao contrário do que sustenta Sérgio Rodrigues, o português de lá, falado ou escrito, sempre seduziu os portugueses de cá; já no Brasil, a regra com entrevistados portugueses é sempre ou quase sempre a de os traduzir para brasileiro, suponho que com medo de não serem entendidos pelos leitores.
Quanto aos livros, a coisa pia mais fino. Diz o queixoso que «os portugueses acham que nós falamos uma língua de segunda categoria... Existe uma compreensão mais ou menos geral de que nós estamos estragando a língua». Não sei onde é que ele foi buscar tal ideia, tanto mais que os portugueses, desgraçadamente, pouco se preocupam com a sua língua, como ficou demonstrado com o fatídico Acordo Ortográfico, uma espécie de acto colonial invertido, assinado em exclusivo benefício do Brasil, e de que Sérgio Rodrigues, obviamente, foi defensor. Mas ele diz saber «por experiência própria de conversas com editores daí e escritores daqui, que a literatura brasileira, pelo menos há uma ou duas gerações, vem sendo muito mal recebida em Portugal». Assegura ele, acabado de ganhar um prémio literário em Portugal, que nunca teve – porque se opôs, esclarece – um livro que aqui fosse vertido para português de cá, que o mesmo não sucede com a generalidade dos autores brasileiros por cujos pergaminhos se bate. Ora, a verdade é que não teve ele nem nenhum outro: desde a estante dos meus pais até hoje, que eu leio literatura brasileira e jamais, jamais, topei com um só livro de autor brasileiro adulterado para português do reino. Não conheço um livro, não conheço um leitor, que se tenha queixado disso, um autor, um editor brasileiro.
Será que o premiado faria o favor de indicar quem, com que obra? Inversamente, tendo vários livros meus editados no Brasil, desde o primeiro que a editora tentou afincadamente que eu aceitasse mudar todo o texto para versão brasileira e, finalmente, ao menos uma lista de palavras – o que recusei e recuso sempre, mesmo depois de mudar de editora: todos os meus livros publicados no Brasil contêm a menção de que «por expressa vontade do autor, manteve-se o português de Portugal e anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa». Sucedeu até com o meu último livro que, tendo sido outra a pessoa encarregada da edição na Companhia das Letras, ela, por não estar ao corrente das condições, disse-me a certa altura que estava a terminar a adaptação do
texto ao português do Brasil. É claro que a adaptação foi para o lixo, mas disso reforcei a minha convicção de que outros, talvez muitos, autores portugueses são editados no Brasil em "brasileiro" – ou porque não se importam ou porque lhes é imposto e aceitam.
E vamos à terceira queixa do abusado: «o leitor médio português não quer saber da literatura brasileira.» Isto, que para ele é «sintoma de uma deriva cultural triste», tem porém uma razão que não escapou à sua argúcia: é porque os portugueses pensam que «já que o Brasil é tão grande e perigoso, que tem essa música invasora e essa televisão, e agora os youtubers são invasores, já que o Brasil é tão grande e Portugal tão pequeno em população, vamos aqui nos apegar ao último bastião, que é a língua. Eles sabem dançar, eles sabem falar na Internet, mas escrever eles não sabem. E não se discute mais isso». A sério, caro Sérgio? É isso que você pensa que nós pensamos? Consta-lhe ou ouviu em conversas? O que sabe você de Portugal? Quantas vezes cá veio, por onde andou, que autores nossos leu? Olhe, eu fui 57 vezes ao Brasil e nunca me canso de voltar; do interior do Amazonas até lá abaixo, andei por lugares onde poucos brasileiros estiveram, como Palmas, no Tocantins, ou a ilha de Alcântara, no Maranhão, e em todo o lado fiquei fascinado por escutar os «tratos de polé» que os brasileiros tinham dado a esta nossa língua comum; pertenço a uma geração de «leitor médio» que leu o Eça ao mesmo tempo que o Jorge Amado e o Erico Veríssimo e leu o Pessoa ao mesmo tempo que o Manuel Bandeira, o João Cabral de Melo Neto e o Drummond de Andrade; e que embora só mais tarde tenha chegado à Clarice Lispector ou ao fenomenal Machado de Assis, também não desistiu de devassar o português sertanejo do Guimarães Rosa; que nunca parou de ler sobre a história do Brasil escrita por brasileiros ou por estrangeiros e que hoje lê romancistas contemporâneos como Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Raduan Nassar, Chico Buarque, Tatiana Levy, Jeferson Tenório ou Ana Maria Gonçalves – gente que descobri nas minhas idas à livraria Travessa, do Rio, e que agora posso descobrir na mesma Travessa, em Lisboa – que, se para aqui veio, não terá sido certamente para se certificar de que era verdade que, como você disse, «o interesse dos portugueses pela literatura brasileira é tanto como injecção na bunda». E essa teoria de que é porque gostamos muito da música e da televisão (e, já agora também, do cinema) brasileiro, que nos recusamos a ser tentados a gostar da literatura, desculpe lá que lhe diga, mas é de quem tem qualquer coisa de mal resolvido connosco. E eu sei o que é. Infelizmente.
O que você, na esteira de alguns brasileiros incultos, não perdoa é que haja autores portugueses editados no Brasil, além do Saramago. É que os portugueses que aí estão ou aí vão já não sejam todos padeiros de bigode; que a requentada história do roubo do ouro de Minas (20% dele, o tal «quinto real», se tivesse embarcado todo), já não sirva mais de desculpa para os males do Brasil; que a escravatura não possa ser usada como arma de arremesso contra nós pois que a sua vergonha foi partilhada por ambos, portugueses e brasileiros, mas continuou convosco quase 70 anos depois da independência e os seus beneficiários e descendentes ficaram e estejam aí e não cá, tirando os que agora compram aqui casas de luxo na Comporta ou na Quinta do Lago; que sejamos pequenos em população, mas 5% dela já seja brasileira e cada vez haja mais brasileiros a descobrirem um avô português que lhes confira nacionalidade lusitana e passaporte europeu.
De todo o rol de queixinhas e lamúrias de Sérgio Rodrigues outra coisa não era de esperar a não ser que ele concluísse, como concluiu, que tudo é a «expressão de um velho colonialismo mal superado». Francamente, eu já não tenho pachorra para esta conversa, sobretudo quando ela assenta em falsidades e ignorância. Houve tempos, de facto, em que os portugueses, talvez porque tinham acabado de entrar na Europa e se imaginavam novos-ricos, ensaiaram atitudes de sobranceria em relação aos brasileiros, como sucedeu com os dentistas brasileiros aqui chegados. Tive ocasião de escrever contra isso e felizmente isso passou. Hoje, o tal «português médio» vai ao Brasil sempre que pode e continua apaixonado pelo Brasil, esgota os concertos dos músicos brasileiros que não param de cá vir e por alguma razão, adora o sotaque do português do Brasil e está-se nas tintas como é que os brasileiros tratam a língua de Camões – mas agradecíamos que não nos tirassem todas as consoantes mudas com as quais aprendemos a escrever porque os brasileiros não gostam, deixando-os manter a vocês aquelas de que gostam. E só não lêem mais autores brasileiros porque também não lêem mais portugueses nem nenhuns outros.
Portanto, sr. Sérgio Rodrigues, fique lá com o seu gerúndio, que tanta graça lhe faz, e deixe-nos cá a nós com o Camões, velhinho de 500 anos. É que, não sei se sabe, às vezes é mais velho quem nasce em berço mais novo.
Cf. Grande entrevista com o autor brasileiro Sérgio Rodrigues: «Acho um certo abuso quando mexem no meu gerúndio» + «Camões não ficou agarrado ao seu tempo. O que ele diz ainda ecoa»
Texto transcrito com a devida vénia da edição de 29 de agosto de 2024 do referido semanário, escrito segundo a norma ortográfico de 1945.