« (...) Esta breve digressão vem a propósito do uso algo instrumental e arbitrário do termo povo (assim como de outros como «interesse comum» ou «bem comum») por parte de agentes políticos. (...).»
Nunca percebi bem o que se entende, no discurso político, por esse “Povo” de que tanto se fala e que tanta vez é evocado e invocado como razão primeira para fazer o que convém a alguém ou apenas alguns. Em termos teóricos, desde o advento do regime liberal e o fim dos privilégios de berço, todos seremos Povo, nem que seja na acepção jurídica bastante lata de todos os indivíduos de uma dada sociedade partilharem direitos e deveres iguais. Mesmo se, na prática, assim não é. Porque desde as origens desse regime se foi falando em Povo, enquanto se aceitava a prática da escravatura ou da discriminação dos direitos políticos e sociais com base na raça, religião, sexo ou o que possa servir para hierarquizar ou diferenciar.
Veja-se o preâmbulo da primeira e mais duradoura Constituição liberal de sempre, a Americana, que se inicia com um «Nós, o povo dos Estados Unidos», bem claro na forma como delimita desde logo que Povo se refere, ao dos Estados Unidos, mas, principalmente, quando fala em “Nós”. Nós, apenas nós, somos o povo. E o problema nasce aí, porque se existe um “nós”, existem “outros”, que não fazem parte desse povo que pretendia «formar uma União mais perfeita, estabelecer a Justiça, assegurar a Tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o Bem-Estar geral, e garantir para NÓS e para os NOSSOS descendentes os Benefícios da Liberdade».
Em 1789, em França, naquela linguagem da época em que o uso do termo homem é a regra para designar os indivíduos activos na vida pública, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão parece alargar o conceito de povo a todos e não apenas aos nossos, porque afirma que «Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos» (artigo 1.º) e que o primeiro desses direitos, a liberdade, «consiste em poder fazer tudo o que não prejudique os outros: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites senão aqueles que garantem aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos» (artigo 4.º).
No preâmbulo da Constituição Portuguesa encontramos três vezes a expressão «povo português», a primeira referindo-se à entidade que resistiu longamente à ditadura, o que deixaria de fora todas as pessoas que a defenderam ou a mantiveram em funcionamento por quase meio século. Mais adiante (artigo 3.º, n.º 1), afirma-se que «a soberania, una e indivisível, reside no povo», no que parece ser uma formulação clara, mas que, na verdade, é vaga e deixa o conceito de povo aberto a diferentes interpretações.
Esta breve digressão vem a propósito do uso algo instrumental e arbitrário do termo povo (assim como de outros como «interesse comum» ou «bem comum») por parte de agentes políticos, seja em campanha eleitoral, quando tudo se promete ao “povo”, seja durante a governação, quando são definidas políticas menos consensuais que são em regra justificadas com esse interesse ou bem “comum” do tal “povo” que se fica sem perceber bem qual é, em especial quando boa parte se manifesta em desagrado.
Em regra, o uso do termo povo significa realmente «o nosso povo», os “nossos”, “nós”, considerando que quem está do outro lado não pertence propriamente ao “povo”. Muito se afirma que a democracia e as eleições dão voz e poder ao “povo”, mas não é incomum que, conhecidos os resultados, apareçam críticas, nomeadamente por muitos dos que antes clamavam pela defesa verdadeira dos interesses desse “povo” que os não terá conseguido compreender. Se interpretarmos como povo, o conjunto de cidadã(o)s que quis exercer o seu direito ao voto.
Já Cícero considerava como povo «não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum» (Tratado da República, Livro I, XXV), numa definição mais volitiva do que inclusiva. Faz parte do “povo” quem quer e não propriamente “todos” os que partilham um determinado território, língua ou mesmo cultura. Ou a mesma crença política, acrescentaria. Porque nos dias de hoje, o “povo” são apenas os “nossos”.
Texto da autoria do professor português Paulo Guinote, transcrito, com a devida vénia, do Diário de Notícias de 18 de março de 2024. Escrito de acordo com a ortografia de 1945.