« (...) Perante o facto da hipocrisia grotesca com que, habitualmente, conduzimos as nossas vidas, não há como escapar à sensação de que talvez os macacos desta história sejamos nós. (...)»
Quando era pequeno, o meu animal preferido era o macaco, talvez influenciado pela Cheeta do Tarzan, pelo chimpanzé dos filmes de Clint Eastwood ou para essa referência televisiva entretanto esquecida que era a Roxana Banana. Da minha primeira visita ao Jardim Zoológico [em Lisboa], tinha eu seis anos, o que recordo com maior vivacidade é a aldeia dos macacos, embora também guarde vagas recordações do elefante que tocava a sineta quando recebia comida ou recebia comida quando tocava a sineta e do tétrico cemitério dos cães (ou dos animais de estimação em geral) que me encheu de uma angústia precoce. Agora que penso no assunto, também recordo a visita à zona dos répteis e do medo que senti ao ver os crocodilos lá em baixo, com os seus olhos pétreos, pérfidos e imóveis, como se esperassem que do céu dos homens uma criancinha lhes caísse para o almoço.
Mas o meu fascínio infantil estava quase exclusivamente reservado para os macacos e para a forma como nos olhavam ou ignoravam a nossa presença criando a dúvida se seriam eles a atração do zoológico ou se seríamos nós, os humanos, que ao entrar ali lhes proporcionávamos a oportunidade de nos observarem com um (des)interesse científico. Não que eles parecessem muito interessados nas nossas atividades. Diria mesmo que nos olhavam com a indiferença de quem sente ocupar um lugar cimeiro na hierarquia das espécies. Talvez, medito eu agora, o meu fascínio derivasse da consciência, em vias de se formar, de que, ao contrário dos outros animais, só um pequeno desvio evolutivo me separava dos orangotangos, dos chimpanzés e da restante família dos símios.
Digo-o não estando certo de que o caminho da evolução lhes tenha sido desfavorável, pelo menos a avaliar pela postura altiva de uns e o comportamento de alegre irresponsabilidade de outros, entretidos nas tarefas de catar as crias, exercitar os músculos nos ramos das árvores e de arremessar dejetos na direção dos humanos ao mesmo tempo que se mostravam imunes às neurastenias dos homens, desobrigados do pagamento de impostos e ignorantes da tortura social de um emprego repetitivo e extenuante numa repartição ou num escritório. Perante o facto da hipocrisia grotesca com que, habitualmente, conduzimos as nossas vidas, não há como escapar à sensação de que talvez os macacos desta história sejamos nós.
Seja como for, é inegável o prazer primitivo de que somos tomados ao contemplar os nossos parentes distantes (peço, desde já, desculpa aos criacionistas que me leem) e quando nós próprios nos dedicamos a macaquear ou a fazer macaquices. Quando nos libertamos dos espartilhos que condicionam socialmente o nosso comportamento e regredimos (ou ascendemos, dependendo da perspetiva e do ponto de partida de cada um) à condição macacal, antecipando assim o Dia do Juízo Final, o Apocalipse ou, como se diz na escatologia simiesca, o Fim da Macacada.
Num certo sentido, a evolução fez-nos perder as vantagens de ser macaco, por muito que determinadas expressões populares como «sorte macaca» ou «morte macaca» nos queiram convencer do contrário, nem sempre recompensadas com as supostas vantagens de ser humano. E é no momento em que contemplamos os macacos, seja numa visita ao jardim zoológico, em programas televisivos sobre a vida selvagem ou acompanhando as notícias de operações policiais, que somos atingidos pela dimensão da perda porque há por aí muito macaco velho com uma sorte que é tudo menos macaca. Quanto a nós, podemos sempre ir pentear macacos.
Crédito da imagem:
Cf. Estar com a macaca + A história da 'sorte macaca' nos 'clássicos' entre Sporting e FC Porto + Sonhar com macaco número da sorte + Significado de sonhar com Macaco
Crónica do escritor português Bruno Vieira Almeida, transcrita, com a devida vénia, do semanário Expresso de 2 de fevereiro de 2024.