O vocabulário e as expressões correntes em uma determinada língua são reflexos do desenvolvimento histórico, social e cultural dos povos que a usam, revelando como vivem, trabalham, pensam, amam e interagem socialmente. Considerando-se os países lusófonos, grande é a complexidade de suas matrizes linguísticas e culturais e diversos são os modos como seus falantes de português se revelam ao mundo. Nesse amplo cenário, um dos campos semânticos curiosos é o que gira em torno da palavra aguardente, designação genérica de uma bebida destilada espirituosa, de alto teor alcoólico, que pode ser feita de cana-de-açúcar, frutas, cereais, raízes e tubérculos, entre outros.
As designações para aguardente estão presentes em muitas línguas e culturas, como o famoso Schnapps alemão ou a pálinka húngara, ambas feitas de frutas. O conhaque, de origem francesa, hoje é bebida de muitas culturas, assim como o rum, que nasceu no Caribe, mas hoje é fabricado em várias partes do mundo, especialmente em países das Américas Central e do Sul. Em muitos países lusófonos há a tradição da aguardente, cada uma com a sua marca cultural, como o grogue de Cabo Verde, o tontonto de Moçambique ou cacharamba de São Tomé e Príncipe, todas feitas da cana-de-açúcar, ou diretamente do açúcar, como a capuca angolana. Mas nem só de cana vivem as aguardentes! Moçambique tem a tradição de produzir muitas bebidas espirituosas feitas de frutas, como a laranja e a manga, e a Guiné-Bissau produz o popular zum-zum, feito da polpa do caju, uma das aguardentes mais diferentes que já provei, apesar dos protestos do amigos guineenses de que eu estava a beber fogo puro. E não podemos esquecer da bagaceira, entidade nacional portuguesa, feita do mosto fermentado do bagaço das uvas e que vai muito bem acompanhada de uma porção de chouriço ou até mesmo de um café tirado na hora. Isso sabe bem a Portugal!
No Brasil, a cachaça é a aguardente nacional e de denominação exclusiva, feita do caldo da cana-de-açúcar, e cantada em versos e prosa por artistas de todo matiz, mas também pela população, que a elegeu como preferência nacional. De acordo com pesquisadores do assunto1, já havia no litoral brasileiro, entre 1516 e 1536, uma versão rudimentar da cachaça, o que faz dessa bebida a mais antiga aguardente das Américas, antes das produções de rum, mezcal, pisco, tequila e bourbon. O universo da cachaça apresenta um rico vocabulário popular, como os sinônimos pinga, branquinha, marvada, abrideira, caninha, dengosa e até «água que passarinho não bebe», entre muitas outras expressões.
Brindemos, pois, à nossa língua e às culturas que a nutrem, de palavras, de sentimentos e, por que não, de uma boa aguardente!
1 Disponível em As Diferenças entre Rum e Cachaça. Acesso em 14/06/2022.
Áudio disponível aqui:
[AUDIO: Edleise Mendes – Aguardente, cultura e língua portuguesa]
Texto elaborado e lido pela linguista brasileira Edleise Mendes, docente na Universidade Federal da Bahia, lido na emissão de 19 de junho do programa Páginas de Português, da Antena 2,