Reflexão suscitada pela Conferência internacional sobre o ensino do Português
Como professora do 3.º Ciclo do Ensino Básico e do Ensino Secundário, participei na Conferência internacional sobre o ensino do Português, realizada no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, nos dias 7, 8 e 9 de Maio de 2007, por iniciativa da Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular. Esta iniciativa surge no momento em que os resultados da avaliação escolar, provenientes de estudos nacionais e internacionais, diagnosticam graves problemas no âmbito da literacia e do domínio da língua que exigem tomadas de decisão quanto ao quadro científico-metodológico que orienta a prática pedagógica do docente de português. A organização desta Conferência internacional sobre o ensino do Português vai ao encontro da necessidade de criar espaço para «reflectir, de forma alargada, pluridisciplinar e transversal, sobre os grandes problemas que hoje se colocam ao ensino do português e à sua aprendizagem em contexto escolar (…)», como referiu, na abertura, o Professor Doutor Carlos Reis que a apresentou como «ponto de partida para a formulação de um conjunto de recomendações a endossar ao poder político».
Após três dias de trabalho, em que foram chamados a partilhar as suas reflexões os melhores especialistas em domínios cruciais do ensino do Português, tornou-se clara a existência de três ordens de problemas que colocam o professor de português perante encruzilhadas difíceis de resolver: a primeira diz respeito às diferentes concepções de «ensino do Português»; a segunda, às zonas de tensão resultante das orientações metodológicas que competem entre si; a terceira, às pressões, directas e indirectas, que têm vindo a ser exercidas pela sociedade e pelas diversas comunidades científicas sobre o professor de Português.
A primeira grande divergência sentida diz respeito à concepção de «ensino do Português» que parece ser entendido de três modos diferentes: «predominantemente ensino da literatura», «predominantemente ensino da língua», «ensino integrado de língua e de literatura». Enquanto numa concepção do Português, entendido predominantemente como ensino da língua, prevalece a competência linguístico-comunicativa sobre a competência estético-literária, já numa concepção do ensino do Português com estudo predominante da literatura, a competência estético-literária supera a competência linguístico-comunicativa, sendo que uma e outra têm defensores e críticos, estudiosos da literatura, por um lado, linguistas, por outro lado, que defendem, de modo convicto, os benefícios educativos comprovados e reconhecidos de cada uma destas concepções. Uma terceira concepção de «ensino do Português» poderia ser designada por linguístico-literária, estando contida no termo «linguístico» a componente comunicativa e no termo «literário» a componente estética. O esquema conceptual integrado de reflexão da língua (estrutura e funcionamento) e de estudo de obras literárias (que considera mas que não se esgota no estudo do modo de realização literário da língua), ao contrário das duas concepções anteriores, colhe o aplauso, quer de estudiosos da literatura, quer de linguistas, como se sabe. Vítor Manuel Aguiar e Silva e Fernanda Irene Fonseca têm sido as vozes que mais amplamente têm defendido esta concepção, embora por vias diferentes. Vítor Manuel Aguiar e Silva coloca o foco sobre os conteúdos de ensino do Português que, em seu entender, se situam no plano de uma interdisciplinaridade entre os estudos linguísticos e os estudos literários. Neste plano interdisciplinar, seriam acolhidos estudos «translinguísticos» (termo reabilitado de Bakhtine) como: «o renascimento e a redefinição da estilística; a linguística textual e o texto literário; a pragmática linguística e a pragmática da literatura; a análise do discurso e a análise do discurso literário; a linguística cognitiva e a poética cognitiva.» [Conferência internacional sobre o ensino do Português, Resumos das Apresentações, página 9]. Fernanda Irene Fonseca postula, como sabemos, a implicação linguística no ensino do Português literário e não literário, colocando o foco na formação do professor a quem cabe a tradução didáctica de uma abordagem integrada dos conteúdos linguísticos e literários consignados nos programas da disciplina de Português. Cada uma destas concepções encontra, nos docentes de Português, fidelidades que se traduzem em práticas pedagógicas ora orientadas para o estudo da língua, ora orientadas para o estudo da literatura, ora orientadas para a integração (nem sempre harmoniosa) da reflexão linguística com a análise literária. O facto de estas práticas coexistirem resulta numa diversidade de caminhos e percursos de ensino e de aprendizagem, sempre interessante mas nem sempre regulável por métodos e instrumentos únicos, uma vez que implicam decisões metodológicas diferentes, que constituem a segunda grande divergência no ensino do Português.
Esta segunda grande divergência está relacionada com princípios metodológicos que competem entre si no modo como se operacionalizam os conteúdos de procedimento consignados na organização curricular dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico em ordem à consecução dos objectivos previstos. De acordo com as instruções oficiais, «a concepção dos programas prevê que a reflexão sobre o funcionamento da língua acompanhe e favoreça o desenvolvimento das competências dos alunos nos três domínios [oralidade, leitura, escrita].» (P.L.P. 1991: 9) Esta concepção fez emergir zonas de grande tensão situadas sobretudo no domínio da leitura e no do funcionamento da língua. Esta tensão abre caminho para a diversidade de práticas pedagógicas que cada professor tem ao seu dispor no acto de decidir o percurso de ensino e de aprendizagem de determinados conteúdos. Assim, é ao professor que cabe decidir
(i) na planificação das actividades de leitura orientada, qual o objecto de análise textual (texto literário e/ou texto funcional/utilitário) e o tempo curricular dispensado a cada um dos tipos de texto (análise de texto ou análise literária?);
(ii) na planificação das actividades de funcionamento da língua,
a. Que concepção pôr em prática: ensino da gramática ou reflexão sobre a língua?
b. Por que metodologia optar: ensino-aprendizagem autónomo da estrutura e funcionamento da língua (oficina de gramática) ou integração da reflexão sobre a língua no trabalho de análise textual?
c. Que saber relativamente à língua activar: saber gramatical ou saber linguístico?
d. Que instrumento teórico usar e em que quadro teórico de investigação sobre a literatura e sobre a língua se situar?
Do facto de não haver resposta única para estas questões deriva, como sabemos, a diversidade, a sobreposição e a competição de práticas que, sendo pedagogicamente válidas, não assentam nos mesmos pressupostos científicos nem metodológicos. Esta abertura oferece ao professor a possibilidade de adequar a cada contexto de ensino e de aprendizagem a estratégia e a metodologia que achar adequada à superação de dificuldades e à consecução dos objectivos programáticos. No entanto, o que se verifica actualmente é que esta possibilidade, antes considerada uma ferramenta pedagógico-didáctica fundamental na prática da docência, mais recentemente tem exercido sobre os professores fortes pressões que constituem a terceira área problemática no ensino do Português.
Até há relativamente pouco tempo, o professor de Português dominava um conjunto mais ou menos estabilizado (que não significa estático ou estanque) de saberes que respondiam, de modo razoável, às necessidades de aprendizagem dos alunos e às exigências da sociedade. Hoje, os saberes implicados no exercício da docência e no ensino do Português alargaram-se e o contributo da construção teórica e da investigação científica em áreas disciplinares cruciais expandiu-se, complexificou-se e especializou-se. O professor de Português é então chamado não só a aprofundar cientificamente o seu conhecimento em cada uma das áreas de saber (estudos literários, estudos linguísticos, estudos psicolinguísticos, estudos das ciências da comunicação, estudos históricos, estudos sociológicos) e em cada um dos sub-domínios dessas grandes áreas de saber (exemplo a partir dos estudos linguísticos: História da Língua, Fonética e Fonologia, Morfologia, Sintaxe, Semântica, Teorias da Enunciação, Linguística de Texto, Análise do Discurso, Pragmática; exemplo a partir dos estudos literários: História da Literatura, Teoria da Literatura, Literatura medieval, Literatura infanto-juvenil, Literatura Contemporânea, Semiótica, Crítica Literária, entre outros), com o domínio dos respectivos quadros e instrumentos teóricos, mas também a elaborar articulações de dois níveis: a articulação entre os diversos campos de saber (exemplos: ciências da comunicação e linguística de texto, análise sintáctico-semântica e análise literária) e a articulação entre o conhecimento teórico especializado e o nível cognitivo e etário dos alunos (indivíduos com idades compreendidas entre os 10 e os 18 anos) de acordo com um quadro educativo (político e pedagógico) predeterminado.
A este trabalho específico do professor dos Ensinos Básico e Secundário dá-se o nome de «didactização» que, infelizmente, ainda é sentido como um processo menor de simplificação e redução de conceitos teóricos oriundos da complexa, especializada e sofisticada elaboração científica dos vários domínios do conhecimento. Acontece, porém, que esse processo de didactização se tem vindo a complexificar devido quer à heterogeneidade de comportamentos, níveis de conhecimento, recursos e saberes da população estudantil, quer à quantidade e qualidade dos resultados da investigação científica directa e indirectamente implicados no ensino e aprendizagem do Português. Esse trabalho, a produzir em momento prévio à execução de cada aula, exige investigação, estudo, conceptualização, produção, avaliação, experimentação, regulação. Esse trabalho exige tempo. O professor, a quem desejavelmente caberia realizar o trabalho acima gizado, quando envolvido, a tempo inteiro, nas actividades escolares actualmente requeridas, só muito a custo conseguirá, em tempo útil, manter uma permanente actualização científica, construir pontes entre os diferentes domínios do saber, produzir materiais cientificamente fundamentados e pedagogicamente validados. Apesar disso, muitos docentes de Português têm procurado aprofundar a sua formação ao nível da especialização, desenvolvendo projectos de investigação científica que resultam na obtenção de certificações de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento. Estes docentes, que fazem da dúvida metódica, da reflexão teórica e da pesquisa científica um dos seus centros de interesse, estão subaproveitados como agentes de renovação de um ensino do Português que, nas palavras de Carlos Reis, «acolhe e incorpora, em conjugação com adequadas mediações pedagógicas, os resultados da investigação científica que se desenvolve em campos do saber articulados em torno da reflexão sobre a linguagem» (Conferência internacional sobre o ensino do Português, Resumos das Apresentações, página 4).
Contudo, não é difícil imaginar a impossibilidade real de compatibilizar harmoniosamente investigação e exercício de docência ao nível da exigência hoje requerida. Esse saber teórico-prático implicado no processo de «didactização» tem de ser apoiado institucionalmente para que, de uma fase de emergência já estabilizada, se passe a uma fase de produção alargada.
Os grandes problemas residem, portanto, no divisionismo que atravessa o ensino do Português quanto à sua concepção, quanto aos princípios metodológicos orientadores da acção didáctica a desenvolver em contexto escolar e, sobretudo, quanto à função e ao perfil do professor, agente sem o qual não existe nem ensino nem aprendizagem. Este, perante as divergências de concepção e de orientação metodológica e perante a produção teórica multidisciplinar, confronta-se com inúmeras incertezas que, no quotidiano escolar, atravessam todas as interacções pedagógicas. Não é possível pensar que depende exclusivamente da inteligência, vontade e entusiasmo do professor resolver os grandes desafios que a sociedade actual coloca ao ensino do Português.