Na trama das redes de sentidos, alguns falantes ficam muitas vezes enredados na multiplicidade de significados que algumas palavras abarcam. Outros, mais ardilosos, apostam na exploração da duplicidades que esses mesmos sentidos permitem, o que lhes abre caminho para afirmações ou insinuações que se sugerem mas não se assumem.
Tomemos como exemplo as palavras consonância e cumplicidade. Estes termos podem ser usados, nalguns contextos, como sinónimos, sobretudo quando exploram a ideia de entendimento. Poderemos, assim, dizer «os seus gestos denotavam consonância» ou «os seus gestos denotavam cumplicidade», descrevendo numa e noutra afirmação uma realidade muito próxima.
Não obstante, o que é facto é que estas palavras raramente serão usadas num contexto de exploração da sinonímia, pois é muito mais interessante explorar os significados que as afastam. Por esta razão, o nome consonância é mobilizado sobretudo para referir a existência de conformidade entre pessoas ou entre realidade ou mesmo o acordo, a concordância existente. Foi esta a intenção do primeiro-ministro António Costa quando afirmou, em março de 2020, na cerimónia de apresentação de cumprimentos do Governo ao Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa: «É essa consonância que nós gostaríamos sempre de manter, e quero testemunhar que nestas duas semanas de partilha de funções de Estado tem sido possível e houve sempre em todos os momentos uma total consonância no que diz respeito à política externa, à nossa participação de Portugal na União Europeia e noutras matérias importantes para o país como a estabilização do nosso sistema financeiro.»
Cumplicidade, por seu turno, agarra-se, sobretudo, a uma significação de cariz pejorativo que remete para a ideia de participação secundária num crime que outro cometeu ou numa atividade criminosa que se encontra a desenvolver.
A cumplicidade assenta na existência de cúmplices, sócios numa atividade maliciosa (que é, bem entendido, protagonizada por outrem). Já a consonância não implica papéis humanos definidos. No máximo, pode dizer-se de alguém que é consonante, ou seja, que tem uma relação de conformidade com alguém ou com alguma coisa.
Face a todas estas possibilidades de significação, há uma dúvida que fica a pairar no ar: quando se afirma que o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa tem uma atitude de cumplicidade para com o Governo, assume-se que o Presidente mantém um entendimento com o governo ou é a ideia viperina de uma parelha de natureza que colabora em atividades menos lícitas que se quer explorar?
Em tempos de aproximação de eleições e de possibilidade de crise política, uma ou outra opção pode revelar muito sobre as intenções de quem diz: este poderá não estar em consonância com as figuras em causa ou quer que sejamos cúmplices daquilo que defende.