« (...) No caso da palavrinha que nos trouxe aqui, o sufixo -ança, num tempo em que ainda andava cheio de pujança, encontrou o verbo criar, chegou-se a ele e nasceu uma bela criança. (...) »
Antes de começarmos, note como a palavra tem um sufixo muito curioso: -ança. Encontramo-lo em palavras que mostram um excesso, como festança, mas também em palavras menos superlativas: confiança, esperança (entre tantas outras).
Portanto, o que este sufixo faz é pegar num verbo e transformá-lo num nome. Confiar transforma-se em confiança; esperar transforma-se em esperança — e por aí fora.
Ao contrário doutros sufixos, o sufixo -ança parece ter perdido a força. Criou palavras durante séculos e, um belo dia, cansou-se. Hoje, é mais difícil usá-lo para criar novas palavras. Amar pode transformar-se em amança? Dificilmente. Parar pode ser parança? Na verdade, sim: parança está nos dicionários, tal como, entre outras mais raras, falança1. Mas palavras como teclança seriam difíceis de criar agora (mas nunca se sabe…). Há outros sufixos que continuam a trabalhar sem parança: se amanhã aparecesse um país chamado Talaguistão, é bem provável que os seus habitantes fossem os talaguistaneses. O sufixo -ês está vivo e recomenda-se.
No caso da palavrinha que nos trouxe aqui, o sufixo -ança, num tempo em que ainda andava cheio de pujança, encontrou o verbo criar, chegou-se a ele e nasceu uma bela criança. Este criar veio — surpresa! — do latim, mais propriamente da forma verbal creāre. O verbo latino já tinha vindo da antiga forma proto-indo-europeia *ḱer-, que significava crescer ou fazer crescer e que também está na origem do verbo português crescer. O verbo «criar» também deu origem a criatura, criação, cria, criadouro…
E o -ança? Veio do sufixo latino -antia, que deu origem a sufixos semelhantes em muitas línguas: o castelhano -anza, o catalão -ança, o francês -ance, o italiano -anza…
Curiosamente, esta mistura entre o verbo criar e o tal sufixo deu origem a uma palavra muito parecida em castelhano: crianza. Só que, neste caso, o significado não é o próprio humano pequenino, mas sim o processo de criação… O dicionário da Real Academia Española dá este significado à palavra (entre outros): «Acción y efecto de criar, especialmente las madres o nodrizas mientras dura la lactancia.»
A maneira como as línguas próximas moldam os materiais de forma subtilmente diferente deixa-me sempre com cócegas no cérebro. É como se, nestas pequenas diferenças, víssemos o avesso da costura com que se cosem as línguas.
Bem, não podemos fazer grandes viagens, que hoje é dia de estar com os meus filhos. Mas vamos espreitar mais uma língua: no catalão, temos criança, assim mesmo, com cedilha (sinal que o castelhano já não usa). O sentido é que é bastante mais próximo do castelhano do que do português. Como diz o Gran Diccionari de la llengua catalana, criança é a «acció de criar un infant». O exemplo que este dicionário dá é curioso: «La criança del fill li va costar molts diners.» Numa tradução livre: a criação do filho saiu-lhe cara… Note que «va costar» está mesmo no passado: o «passat perifràstic» do catalão faz-se com o verbo anar, ou seja, ir — um verbo que, em português, usamos muitas vezes para nos referirmos ao futuro. Por estranho que nos pareça, «vaig parlar» não é «vou falar», mas sim «falei». Mais um pormenor sobre esta língua? Vaig lê-se como «batch»…
Então, como dizem criança castelhanos e catalães? Em castelhano, temos niño e niña. Em catalão, temos nen e nena. Para se referirem às crianças, genericamente, servem-se das formas masculinas: «los niños» castelhanos e «els nens» catalães. Se quiserem referir apenas as meninas, usam as formas femininas: «las niñas» em castelhano e «les nenes» em catalão. Também temos menino e menina, mas não usamos tantas vezes esta palavra no sentido genérico. O «Dia do Menino» seria um pouco estranho. Já «hoje vou brincar com os meus meninos» fica muito bem.
O Dia da Criança fica, assim, Día del Niño em castelhano e «Dia de la Infància» em catalão. Mas não é só a expressão que muda: a própria data é outra. Afinal, o Dia da Criança não é universal. Em Espanha, é celebrado no dia 20 de Novembro, data consagrada pela ONU. (...)
1 Na primeira versão deste artigo, referia que parança não era palavra portuguesa. As palavras trocam-nos as voltas: a verdade é que a palavra existe e até está nos dicionários. Quem me alertou foi Adela Figueroa Panisse, que me informou sempre ter ouvido parança. Daí, foi um salto até chegar à parança que está nos dicionários portugueses.
Texto publicado no portal SAPO 24 e no blogue do autor Certas Palavras no dia 1 de junho de 2020. Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.