«Aqueles que veem nos termos América e americano uma ação verbal de validação da hegemonia dos Estados Unidos da América querem que a língua deixe de ser um acordo tácito entre uma vastíssima comunidade de falantes [...].»
Referencialmente, objetivamente, a palavra América designa as três Américas. Na comunicação normal entre as pessoas, América designa Estados Unidos da América. Isto porque a língua é uma convenção: toda uma comunidade de falantes convenciona tacitamente designar um conceito por uma certa palavra, à revelia da referencialidade. E está convencionado que americano quer dizer «cidadão dos Estados Unidos da América». América é então uma forma abreviada de Estados Unidos da América. Daí o Era uma vez na América ou o Capitão América, ou Um americano em Paris ou O sonho americano, A Golpada americana, ou a música América no West Side Story, etc., etc.
Aqueles que veem nos termos América e americano uma ação verbal de validação da hegemonia dos Estados Unidos da América querem que a língua deixe de ser um acordo tácito entre uma vastíssima comunidade de falantes – do presente e do passado – consolidado por todo um legado cultural – e passe, assim, alegadamente, a seguir critérios de objetividade e rigor.
Então, uma alternativa será dizer-se norte-americano. Só que, em rigor, não há nenhum país que se chame América do Norte, além de que o termo deixa de fora os canadianos.
Outra proposta é estadunidense, mas o problema é que aqui, também em rigor, em rigor, estadunidense poderá querer dizer «mexicano», dado que o nome oficial do México é Estados Unidos Mexicanos, ou [aludir a]o Brasil, que, até 1967, era a «República dos Estados Unidos do Brasil». De qualquer maneira o termo estadunidense também só poderá funcionar como gentílico, doutra maneira, ironicamente, teríamos de dizer que toda esta discussão é fruto de um generalizado sentimento antiestadunidense.
Há pessoas de várias nações que continuam a dizer americano, américan, americano, e há outras que optam por norte-americano ou estadunidense. E está tudo bem. Cada um diz o que quer. A questão está em que quem não quer dizer americano não pode invocar razões de rigor e objetividade. O problema de se invocarem falsas razões de objetividade é que a imprensa portuguesa ao dizer norte-americano e a imprensa brasileira ao dizer estadunidense está a legitimar-se como imprensa objetiva, quando, na verdade, a opção é política.
Apontamento de autora na rubrica "Cronicando" do programa Páginas de Português, transmitido na Antena 2, no dia 6/01/2019.