« (...) [Uma[ variedade de abonações que se presta a equívocos. (...)»
Carlos Alberto Coimbra, residente em Toronto e leitor de vários jornais portugueses através da Internet, considera «uma burrice, que por vezes resulta até em informação incorrecta», a utilização frequente do termo norte-americano para designar aquilo que «sempre foi simplesmente americano». Além de ser uma «burrice», diz ainda o leitor, uma tal utilização «nem sequer é consistente, já que, ocasionalmente, e por vezes dentro do mesmo artigo, os autores desta aberração revertem a americano».
Haverá algum motivo para que se tenha tornado tão comum o uso do termo norte-americano? Na opinião de Carlos Alberto Coimbra, que é cidadão português e é igualmente cidadão do Canadá, «este hábito deve ter começado através da divulgação ou tradução de conteúdo programático com origem nos países de língua espanhola ou portuguesa da América do Sul, América Central e Caraíbas, onde um belo dia decidiram começar a querer distinguir-se, enquanto oriundos também do continente América, dos outros americanos do subcontinente a norte deles. Os europeus não precisam sequer de imaginar a necessidade de fazer tal distinção, como se houvesse alguém que não percebesse que americano sempre teve a sua raiz no nome abreviado dos EUA e não no nome do continente. O resultado é uma asneira que chega ao ponto de a RDP Internacional rebaptizar os EUA com o nome de Estados Unidos da América do Norte.»
São inúmeros os exemplos que o leitor apresenta. Assim, e começando pelo DN:
– «Valdas Adankus, 71 anos, de dupla nacionalidade, lituana e norte-americana» (em comentário: «Nacionalidade ultrapassa os limites do razoável, já que não existe um país chamado América do Norte»);
– «O único caso comprovado em Portugal envolveu um coronel americano (...) no destacamento militar norte-americano na Base das Lajes».
Do Jornal de Notícias, registam-se, entre outras, as seguintes frases:
– «Fred Morrone, responsável pela segurança nos aeroportos da costa leste norte-americana...» (em comentário: «Dá a ideia que uma só pessoa é responsável pelas costas canadiana e dos EUA»);
– «Saliente-se que todos os aeroportos norte-americanos se encontram em alerta máximo (...) depois dos atentados contra as embaixadas dos EUA.»
Finalmente, do Público, são mencionados casos como os seguintes:
– «Em vários estados norte-americanos...»;
– «Em 1962, quase 17 milhões de norte-americanos tinham mais de 65 anos» (em comentário: «Quer dizer os canadianos e os americanos ou só os modernos americanos? O leitor fica sem saber a que se refere a estatística.»);
– «Norte-americanos descontentes com telecomunicações.»
Em todas estas situações, conclui Carlos Alberto Coimbra, «o correcto é americano, estado-unidense ou dos Estados Unidos. Será que, se nos jornais se escrevesse americano, os leitores não entendiam? E como se traduz hoje o título de filmes como An American in Paris ou An American Were Wolf in London?»
Como se diz
Transcrevi quase na íntegra esta carta por julgar que o problema que levanta é sério e que os argumentos invocados são consistentes. Infelizmente, ao contrário do que imagina o seu autor, longe de ser um problema confinado aos jornais, ou sequer à língua portuguesa, estamos perante uma ambiguidade avalizada por dicionários e espalhada por diversos idiomas.
O leitor tem razão em perguntar porque é que se escreve norte-americano para referir pessoas ou coisas dos EUA. Considerados em abstracto, ou de um ponto de vista estritamente geográfico, se o termo americano é ambíguo, o termo norte-americano ambíguo continua. Em contrapartida, inseridos em qualquer contexto relativo aos EUA, aquilo que um significa é exactamente igual ao que significa o outro.
O leitor tem igualmente razão quando sugere que o termo americano foi há muito consagrado pelo uso internacional para designar o que se refere aos EUA, à semelhança, aliás, do termo América, que desde pelo menos o início do século passado, além de um continente, significa também, ou sobretudo, um Estado e uma nação específica. Que eu saiba, nunca ninguém teve dúvidas, por exemplo, quanto ao título do livro de [Alexis] Tocqueville, A Democracia na América.
Por último, o leitor tem razão quando aponta a ocorrência, devidamente comprovada, de equívocos que comprometem a função da imprensa, isto é, a comunicação com o público.
Mas o problema, como disse, não é só dos jornais. Quem passar os olhos pelos dicionários, onde era suposto virem as informações necessárias para uma adequada utilização dos vocábulos, dar-se-á conta da verdadeira trapalhada em que estamos metidos. É verdade que o dicionário de Cândido de Figueiredo, quer antes quer depois do famigerado acordo luso-brasileiro de 1945, ignora em sucessivas edições o termo norte-americano e atribui a americano o significado de «relativo à América» ou «relativo aos EUA». Mas a edição corrigida e actualizada do dicionário de Moraes e Silva que se publicou no ano do acordo, a décima, não podia ser mais ambígua: «Norte-americano, relativo ou pertencente à América do Norte; natural da América do Norte.» E, a tipo de abonação, lá vem uma frase de Afrânio Peixoto: «O Brasil, disse o historiador norte-americano Herbert Bolton...» Três anos depois, o dicionário de Artur Bivar já não hesita em dar o passo seguinte: «Norte-americano, relativo aos Estados Unidos da América do Norte; a língua inglesa dos EUA.»
A partir de então, tem havido versões para todos os gostos. O brasileiro Antenor Nascentes, em 1966, designa indiscriminadamente por americano ou norte-americano o que é «relativo à América, natural deste continent»" e o que é «relativo aos EUA, natural deste país». O dicionário da Porto Editora, na 5.ª edição, regista o vocábulo americano com o significado de "relativo à América, natural ou habitante da América", sem especificar mais nada, e define norte-americano como o que é «relativo à América do Norte (Canadá, EUA e México)». Quanto à Academia das Ciências [de Lisboa], o primeiro e único volume publicado do seu dicionário segue a linha sensata do Cândido: americano diz-se do que é «relativo à América (continente americano)» e do que é «relativo aos EUA, natural dos EUA ou naturalizado como tal«. Resta saber o que dirá a Academia sobre o norte-americano, se o vier a registar.
Não se julgue que tudo isto é apenas uma confusão portuguesa. A enciclopédia Larousse, por exemplo, também regista nord-american como o que é da América do Norte, em particular dos EUA. O Websters, de Springfield, Massachusetts, refere north american como um vocábulo traduzido do espanhol, mas consagra-o como «o que é característico das pessoas dos EUA, por contraposição especialmente aos povos latinos do México, América Central, índias Ocidentais e América do Sul». Enfim, o mais recente dicionário de Oxford, que não inclui north-american, anota que a utilização do termo America, a designar apenas os EUA, «embora comum», não é bem-vista por «muitas pessoas de outras partes do continente».
Perante esta variedade de abonações, talvez seja exagero falar de «burrice», ou mesmo de «asneira», sempre que deparamos com o adjectivo ou substantivo norte-americano para designar o que pertence aos EUA. Mas é inegável que se trata de uma palavra que, do ponto de vista semântico, nada acrescenta ao simples americano, ou seja, uma redundância. Ainda por cima, uma redundância que se presta a equívocos, como alguns dos que o leitor, com toda a razão, critica.
Cf. Americano, estadunidense ou norte-americano? As disputas sobre o uso do termo para nascidos nos EUA + Povo dos Estados Unidos
Artigo publicado no jornal português Diário de Notícias de 23 de Novembro de 1998.