Existe hoje alguma hesitação no uso do verbo arrear, sendo por vezes substituído pela forma «arriar», pelo que é natural que haja dúvidas e se considere que, em determinadas situações, se deve utilizar o verbo «arrear» e, noutras, a forma «arriar». Por exemplo, nas expressões «arrear a bandeira» ou «arrear um cabo», o verbo deverá escrever-se com «e» ou com «i»?
Utilizada no 4.º programa da 9.ª série do magazine televisivo Cuidado com a Língua!, a expressão «arrear (o) cabo»*, como aí foi grafada, concitou algumas perplexidades: não seria, antes, «arriar [o cabo]»?
Defende-se a utilização do verbo «arrear» (com «e») por cinco motivos: (1) os registos dos dicionários antigos de referência, (2) a etimologia, (3) a conjugação do verbo, (4) a terminologia náutica, e (5) a legislação e as publicações oficiais sobre a bandeira portuguesa.
1. Consultando o Diccionario Contemporaneo da Lingua Portugueza (Imprensa Nacional, 1881), o Diccionario Manual Etymologico da Lingua Portugueza, de Adolpho Coelho (P. Plantier – Editor, 1890), o Diccionario Universal Illustrado, Linguistico e Encyclopedico, dirigido por Eduardo de Noronha (João Romano Torres e C.ª, Editores, 1917 a 1921) e a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (editada pela Editorial Enciclopédia, Lda., Lisboa – Rio de Janeiro, entre 1935 e 1957 e actualizada e reeditada entre 1958 e 1999), verifica-se que a palavra «arrear» apresenta os cinco conjuntos de significações que se seguem.
1.1. Como verbo transitivo, significa «baixar o que estava em lugar elevado, por meio de cabos e roldanas»; «abater, amainar»; «descer as velas»; «largar sucessivamente um cabo ou uma linha»; «fazer recuar». Em contexto náutico, a expressão «arrear sobre volta» significa «arrear fazendo recorrer uma volta do cabo, passada a uma malagueta, cunho, etc., para o aguentar quando preciso».
1.2. Como verbo intransitivo, significa «não poder mais, ficar exausto, desanimar, cansar-se».
1.3. Forma a expressão «arrear bandeira», que significa «abaixar a bandeira que foi içada, apenas para a retirar do mastro ou em sinal de deferência ou de submissão» e, ainda, em sentido figurado, «declarar-se vencido».
1.4. Como verbo transitivo, também significa «munir, aparelhar com arreios, pôr os arreios (a uma cavalgadura)»; «ataviar, adornar, ornamentar, enfeitar»; «mobilar, preparar a casa com os ornamentos necessários».
1.5. Como verbo reflexo (arrear-se), significa «enfeitar-se, adornar-se, ataviar-se, vestir os seus melhores trajes» e, em sentido figurado, «elogiar-se, jactar-se».
A palavra «arriar» não surge nos dicionários acima referidos e está registada na Grande Enciclopédia apenas como um termo utilizado nas marinas de sal de Aveiro para designar a ideia de «inutilização» no âmbito da linguagem das salinas, sendo referido nessa enciclopédia que traduz um dos sentidos vulgares de «arrear», que é o de «deitar abaixo, desmoronar», pelo que, «de acordo com Gonçalves Viana [filólogo] e a ortografia oficial», deverá escrever-se arrear (e não «arriar»).
2. Quanto à origem, a palavra «arrear» aparece registada como tendo sido formada de a + ré + ar, ou como tendo tido origem no termo arredāre (= prover, arranjar), do latim vulgar, ou, ainda, formada de arreio + ar. Estaremos, pois, ou perante um caso de palavras convergentes ou de extensão semântica. Independentemente disso, a grafia de origem é sempre a mesma: com «e».
A palavra «arriar», entretanto (final do séc. XIX, séc. XX), começa a aparecer registada em alguns dicionários, com a indicação de ter origem no catalão arriar, palavra também oriunda do tal termo arredare do latim vulgar que terá dado origem à palavra portuguesa «arrear». E, por esse motivo ou por influência da forma como a palavra é pronunciada, começa a haver quem escreva «arriar», surgindo esta palavra inclusivamente registada em dicionários portugueses e brasileiros (sobretudo brasileiros) e em diversos sítios dedicados à Língua Portuguesa, sítios esses que não apresentam uma justificação que a abone. Não se encontra justificação para se utilizar a forma oriunda do catalão, visto que o termo arrear (com «e») já existia no português com o significado que se pretende dar à nova forma.
Aliás, no Vocabulário Ortográfico e Ortoépico da Língua Portuguesa, de Gonçalves Viana (Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1909), regista-se, na pág. 62, o termo arrear com as significações de «abaixar» e de «enfeitar», mas não aparece nenhum registo da eventual forma «arriar».
3. Atentando agora na morfologia, refira-se que as formas do presente do indicativo do verbo arrear são «(eu) arreio», «(tu) arreias», «(ele, ela) arreia», «(nós) arreamos», «(vós) arreais», «(eles, elas) arreiam» e que se podem contar como exemplos de verbos que se conjugam da mesma forma (verbos terminados em -ear) os seguintes: bloquear, >cercear, falsear, frear, golear, ladear, nomear, nortear, passear, pentear, refrear, semear. Refiram-se, ainda, os seguintes verbos terminados em -rrear: acarrear, aperrear, bandarrear, calcorrear, derrear, encorrear, fanfarrear, guerrear, terrear, torrear, zangarrear.Ora, não haverá dúvidas de que se diz «ele arreia a bandeira».Já os verbos terminados em -iar, não têm, na generalidade, esse «e» nas referidas formas do presente do indicativo (são poucos os que fazem excepção a esta regra e para cada um existe uma justificação). Esses verbos são mais de uma centena (exemplos: angariar, apropriar, avariar, afiar, associar, copiar, desconfiar, enviar, esfriar, principiar, pronunciar, vigiar), mas terminados em -rriar surgem muito poucos (numa primeira busca, apenas dois: arriar e alforriar). Ora o verbo «alforriar» (caído em desuso) conjuga-se com «i» (e não com «ei») no presente do indicativo («eu alforrio», «tu alforrias», «ele alforria», etc.), pelo que o verbo «arriar» teria de se conjugar da mesma forma. Não há, aliás, justificação para que apareça em alguns sítios na internet – não em todos – «eu arreio», «tu arreias», etc. como formas do verbo «arriar». Considera-se que são, sim, formas do verbo «arrear».
4. Se se consultar a terminologia náutica (por exemplo, aqui), verifica-se que só está registado o termo arrear, que remete para «amainamento», isto é o «acto de colher, amainar as velas (em oposição a içar)».
5. Na legislação específica oficial sobre a bandeira nacional portuguesa e em publicações oficiais, o termo utilizado é arrear. Exemplos: «arreada», no número 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 159/87, de 30 de Março; «arreada» e «arrear», nas páginas 4 e 5 da publicação intitulada «A Bandeira Nacional e os tribunais de 1.ª instância», do Centro de Formação de Funcionários da Justiça, 2012; «arrear», na notícia sobre a cerimónia ocorrida no dia 1.12.2016 (Cerimónia Comemorativa do Dia da Restauração), divulgada no sítio da Presidência da República Portuguesa.
Assim, considerando os registos antigos, a etimologia, a terminologia náutica, a legislação específica oficial sobre a bandeira portuguesa (Decreto-Lei n.º 159/87, de 30 de Março) e a morfologia do verbo, isto é, o facto de não se utilizar «ele *arria a bandeira» (hipotético verbo arriar), mas, sim, «ele arreia a bandeira» (verbo arrear), defende-se que a forma a utilizar deverá ser arrear («arrear a bandeira», «arrear um cabo», etc.).
* «Arrear (o) cabo» usa-se na linguagem náutico, quando, por exemplo, o mestre de uma rebocador manda libertar ou soltar o cabo amarrado ao cais ou ao navio que está a dar assistência de chegada ou de partida.
N.E. – Por opção da autora, este texto segue a norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990..