As V. explicações muitas vezes têm um suporte legal(citam regras, números, etc). Ultimamente tivemos uma intervenção dum tradutor de Bruxelas acerca da pronúncia do R. Eu, aliás, tinha ficado muito surpreendido pela V. resposta (aquela que engendrou a mencionada intervenção) que aconselhava a pronunciar o R não velar. Acho que mesmo em Coimbra, embora se use com muito mais frequência esse R não tenho a certeza se a grande maioria das pessoas faz isso. (Eu aconselhava o contrário, isto é o uso do R velar nos contextos de "rr" já que é mais usado, a minha intuição diz-me que mais de 2/3 dos portugueses se inclinam a tal pronúncia do R.)
Tudo isso me leva a uma observação muito lata acerca da atitude normativa em linguística. Permitam-me, portanto, esta minha opinião,embora ela se enquadre melhor como artigo numa revista da especialidade do que na V. Ciberdúvidas.
No século XIX, para não ir mais longe, o mesmo autor escrevia a mesma palavra de uma maneira diferente. Desde o início deste século tenta-se normalizar tudo. A prescrição domina a linguística até aos anos 60, em que, como se sabe, tem lugar a revolta cultural que também se reflecte na linguística. E surge a atitude descritiva, ou seja começa a valorizar-se a língua no seu uso, embora com forte oposição dos que defendem normas. Quem sabe o que é "rhyming slang" em inglês,deve saber do famoso caso dos "brass tacks" que no "slang" significava "facts". Hoje é o uso corrente na expressão: "Let`s get down to brasstacks" (tradução: vamos aos factos, em especial, aos factos menos agradáveis). Nos anos 80 surgiu um fenómeno engraçado, chamado "backslang". Uma palavra, por exemplo "boy" pronunciava-se "yob". Mas o mais engraçado é que a palavra "yob" entrou para o uso corrente da língua, ficou aceite, embora com o sentido pejorativo (rufião). Estes exemplos demonstram que as regras impostas de cima para baixo, mesmo que tenham peso de autoridade linguística, não servem para nada. Veja-se o que aconteceu com o último famoso Acordo ortográfico, várias vezes"remendado" e que envolvia vultos bem conhecidos. Se hoje quisermos seguir Lindley Cintra, devemos dizer: "Tenho gastado muito dinheiro". "Tinha entregado os papéis". Ou "Tinha acendido o esquentador", para não falar do "por que" no sentido "porque". Mas isso é ainda o menos. O problema surge quando pegamos nos dicionários de verbos portugueses publicados nos últimos 15 anos e verificamos que uns dizem assim e outros assado; basicamente há duas linhas (comparem os verbos tais como"adir", "falir", "aprazer", "delinquar", "arriar" e muitos, muitos outros). Qual das duas normas será correcta ? Por isso a linha normativa falha redondamente, porque, parece, que há várias normas para o mesmo caso.
Penso que também não serve defender o uso corrente duma palavra recorrendo à etimologia, o que vocês muitas vezes fazem. ("Lugar" hoje deveria escrever-se "logar", como ainda se escrevia no início do século, compare-se "in loco" em latim). Em inglês "actual", ou"eventual" já há muito não significa aquilo que significa em português.Também não se deve explicar certos fenómenos por via doutra língua, como simples estrangeirismos. Uma palavra ou é aceite e depois é consagrada pelo uso ou não. Esta é pura e simples explicação, ou seja o critério de bom senso. Como, por exemplo, explicar o significado do "maple" em português, ou, até pouco tempo ainda muito usado "goal average" ? Se compararmos com o original inglês, o primeiro significa um tipo de árvore ou a madeira do mesmo. No segundo caso falou-se e continua a falar-se na "goal difference". Aqui cabe mencionar a palavra "orsay" em espanhol que significa… "fora de jogo". Uma possível ou plausível explicação é via inglês, da pronúncia da palavra "off-side" ouvida pelos espanhóis. Eles, coitados, têm a fonologia tão pobre da língua materna que, pudera, ouvem "orsay". Mas todas estas explicações não interessam em absoluto. O que interessa é o uso corrente da língua, isto é a linha descritiva. Ainda choca, embora menos do que há 10 anos atrás, "vende-se casas". Por muito que não queiramos, e se o uso disto for consagrado, teremos de aceitar aquilo (que vai contra regras básicas da gramática portuguesa) e mesmo que provenha do português usado pelas camadas sociais pouco educadas, tal e qual como os ingleses aceitaram a expressão tirada da Cockney "slang", já mencionada "brasstacks". Suponho que poderá acontecer o mesmo com a segunda pessoa gramatical do Pretérito Perfeito Simples que como única situação"carece" do "s", o que vai contra os hábitos dos falantes da língua,primeiro afectando os menos instruídos. Já cada vez mais se ouve: "Já vistes ?" etc. Outro exemplo com "a gente vamos" para não falar do"pedi-te para telefonar(es)". Aqui lembro-me do deslize da Edite Estrela que nos anos 80 tinha uma rubrica das consultas do português correcto num dos diários de Lisboa e um dia "ralhou" com a pessoa porque usava essa construção feia e um mês mais tarde ela própria usou a mesmíssima construção (feia) mas um dos perspicazes leitores reparou nisso e à consultora não lhe restou mais nada do que pedir desculpas.Se uma palavra, por exemplo, "ertyuiop" ficar aceite no sentido"estúpido", entrará no uso corrente de português. Mas duvido, que isso aconteça, porque têm o "y" e termina no "p" e é difícil de pronunciar.Melhor seria o "calelo" na mesma acepção. Agora só falta é pôr apalavra nos média, especialmente nas telenovelas e outros programas de grande audiência e dois anos mais tarde fica consagrada uma palavra inventada por um polaco que vive em Portugal.
Mais ou menos assim é que se desenvolvem as línguas vivas, as normas só atrasam e por vezes travam esse desenvolvimento, mas nunca por muito tempo. Há quem tema que sem normas pode haver caos. É verdade, mas só se a maioria da população é analfabeta. O caos não ameaça se temos a língua bem implantada e viva, embora em Portugal ainda haja uns 10% de analfabetos. Não é preciso ter normas rígidas. A decisão final vai sempre caber às pessoas: ou aceitam ou rejeitam uma expressão /construção gramatical / pronúncia nova.
Bem DIZIDO, não é?
Cf. contraponto desta controvérsia em Em defesa das regras.