Perante o anúncio dos aperfeiçoamentos que a Academia das Ciências de Lisboa tenciona introduzir na aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 (AO 90) em Portugal, o jornalista Nuno Pacheco, em texto publicado no Público, exorta a «[q]ue volte tudo à mesa, para que, "remendando" o AO ou deitando-o fora, não haja mais escolhas impensadas, baseadas em panaceias há muito desmentidas».
Neste Janeiro pleno de sol, eis que regressam as acaloradas discussões sobre a Língua Portuguesa. Voltou à RTP, na passada terça-feira, o magazine Cuidado com a Língua!; foi lançado um novo livro do tradutor, revisor e professor Marco Neves intitulado A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa (Guerra & Paz); e o PEN Clube promoveu no Goethe Institut, em Lisboa, no dia 9 de Janeiro, mais um debate sobre o acordo ortográfico (AO90). Aliás, é este último que mais promete dar que falar, com o anunciado "aperfeiçoamento" que a Academia de Ciências de Lisboa prepara e de que já foram surgindo alguns tópicos: regresso à diferenciação de "óptico-ótico" e de "pára-para", clarificação do uso dos hífens, reposição de consoantes ditas mudas (pelo menos as que permanecem no Brasil, caso de recepção-receção); ou revisão do uso dos sufixos pan- e com-. Haverá conciliação? Arriscando uma metáfora marítima, esta tentativa de "aperfeiçoamento" arrisca-se a ser vista por uns como um inadmissível rombo no navio, e por outros como o lançamento de bóias de ferro aos náufragos.
Recordando os alertas dos saudosos José Pedro Machado e Vasco Graça Moura, entre tantos outros que se cansaram de argumentar contra os perigos do "monstro" que aí vinha, é possível olhar para a tentativa da ACL como a confirmação clara de um falhanço: se o AO precisa de emendas, e não serão poucas, nunca devia ter entrado em vigor no estado em que está. Os que lamentam a sorte das "pobres criancinhas" caso haja agora mudanças, deviam ter pensado na quantidade de disparates que as obrigaram a aprender para agora, aos poucos, terem de os desaprender. É por isso que os fautores do acordo não querem mudar uma só vírgula: para não ajudarem a sublinhar a sua incompetência.
É, pois, tempo de deixar a habitual lassidão portuguesa e enfrentar o problema. Que se cheguem à frente defensores e detractores do acordo, porque já chega de conciliábulos mornos. Que volte tudo à mesa, para que, "remendando" o AO ou deitando-o fora, não haja mais escolhas impensadas, baseadas em panaceias há muito desmentidas. É curioso que um defensor do AO (considerando-o, ainda hoje, "obra meritória", que "já não pode ser denunciado por Portugal, como país digno"), D’Silvas Filho, tenha publicado há dias no seu blogue e no Pórtico da Língua Portuguesa um texto onde condena, nos vocabulários ortográficos, "a sanha contra as consoantes não articuladas" por uma "obsessão no simplificacionismo. A língua é um complexo que traz consigo a herança de muitas gerações de falantes que a foram aperfeiçoando na comunicação. A língua é mais do que ortografia, mas esta tem interferência na linguagem, por exemplo, nos retornos sobre a fonia. Só se deve alterar a ortografia com pinças, com ciência, senão a fluidez da comunicação intergerações e o encanto das virtualidades da língua podem perder-se." Foi isto que foi feito com o AO90? Só um lunático responderá pela afirmativa.
Apesar da vã retórica, nenhum benefício foi ainda mostrado como resultante da imposição das regras do AO90. O silêncio dá jeito, porque encobre todo o tipo de más opções e desvarios. Mas na língua não há silêncios. Ela rodeia-nos a toda a hora, falada, escrita, viva, múltipla. Um exemplo: numa extensa entrevista que o escritor brasileiro Pedro Maciel fez a Mário Soares e que permaneceu inédita até a Folha de S. Paulo a publicar postumamente, no dia 9, a última questão foi sobre a língua. Perguntou Pedro Maciel: "Não é uma bobagem a reforma ortográfica da língua portuguesa, já que a língua é um organismo vivo, dinâmico e muda-se conforme as novas gerações?" Respondeu Mário Soares: "O que é admirável na nossa comunidade é a variedade, a riqueza e as diferentes contradições. Os brasileiros têm locuções, maneiras de escrever e de falar diferente dos portugueses que enriquecem extraordinariamente a nossa língua, da mesma forma que os africanos e os portugueses. Cada um dá o seu tributo. Eu não sou um grande purista da língua e acho que as línguas são organismos vivos e são os povos que fazem as línguas. Não sou pela uniformização, mas pela variedade e pela diversidade dentro de uma unidade."
Que siga a discussão.
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico