« (...)[É] notícia o crescente número de universidades chinesas com cursos de licenciatura em português (56 em 2022). Mas a situação não foi sempre assim (...).»
Uma novidade do século XXI é a presença, nas universidades portuguesas, de inúmeros alunos chineses, que aqui levam a cabo períodos de intercâmbio durante a licenciatura ou estudos pós-graduados. Muitos deles vêm estudar exclusivamente português, como prova, e.g., o elevado número de estudantes chineses dos cursos de mestrado e doutoramento do Programa de Português Língua Estrangeira / Língua Segunda, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, especialmente desde a década passada. Por outro lado, é notícia o crescente número de universidades chinesas com cursos de licenciatura em português (56 em 2022). Mas a situação não foi sempre assim.
De acordo com artigo de Li Changsen publicado nas Atas do 1.º Fórum Internacional de Ensino de Língua Portuguesa na China (2012), entre 1949, data de implantação da República Popular da China (RPC), e os anos 1960, a China continental não tinha tradutores nem intérpretes de português, nem instituições para ensinar a língua portuguesa. Como a RPC não tinha relações diplomáticas com o Brasil e Portugal, não podia enviar estudantes para esses países. Para desenvolver contactos com os partidos comunistas (PC) do Brasil e Portugal e com outros indivíduos ou movimentos de países lusófonos, o governo servia-se de intérpretes de espanhol ou inglês.
A primeira escola superior da China a ter um curso de Licenciatura em Língua e Cultura Portuguesa foi o Instituto de Radiodifusão de Pequim (IRB), criado em 1959, com o objetivo de formar produtores, locutores e técnicos de comunicação social. Na década de 1960, aprofundaram-se as divergências ideológicas entre os PC da União Soviética e da China, pelo que o Governo chinês assumiu uma política externa independente; além disso, Mao Zedong formulou a teoria dos «três mundos», destacando o apoio da China aos países e povos do «Terceiro Mundo», que combatiam o imperialismo e o colonialismo e lutavam pela independência. O reforço da atuação na política e na divulgação ideológica para o exterior pelo governo da RPC requeria grande contingente de intérpretes e tradutores, lacuna que o «Plano de 3000» talentos visava colmatar. Segundo esse Plano, as escolas de ensino superior deveriam preparar, em sete anos, três mil intérpretes e tradutores de diversas línguas estrangeiras. Em 1960, foi criada a Faculdade de Línguas Estrangeiras de Pequim, sobretudo com as principais línguas de países do Terceiro Mundo, incluindo o português. O IRB prosseguiu a formação de quadros de língua portuguesa, mas a Revolução Cultural (1966-1976) fez cair em desgraça a instituição e muitos dos seus licenciados. Também a licenciatura de português do Instituto das Línguas Estrangeiras de Pequim, iniciada em 1961, foi interrompida pela Revolução Cultural, mas retomada em 1973.
Ainda no início da década de 1960, o governo da RPC recrutou estudantes de 2.º ano de outras línguas, para estudar português em Macau, «a portas fechadas», num edifício da Companhia Comercial (chinesa) Nam Kuoang, visto o território não ter, à época, universidade. Três grupos estudaram em Macau, entre 1960 e 1966. Do grupo de 1960-1962, saíram os primeiros intérpretes e tradutores de português na China. O 3.º grupo (1964-1966) foi forçado a regressar a Pequim em 1966, devido à Revolução Cultural, tendo trabalhado por dois anos numa granja militar; muitos foram recrutados posteriormente pelo Ministério do Exterior e alguns tornaram-se embaixadores.
Muito aconteceu em pouco mais de 60 anos.
Artigo da linguista Margarita Correia, transcrito, com a devida vénia, do Diário de Notícias de 25 de março de 2024.