Texto do nosso consultor Guilherme de Almeida sobre a querela à volta do uso do ponto na abreviação dos numerais ordinais. Cf. Textos Relacionados, ao lado.
Muito se tem escrito – e comentado – sobre o uso ou não uso do ponto na abreviatura dos ordinais.
Acidentalmente passei os olhos por esta entrada: «Dizer que é erro escrever "quarta" como "4ª"... é erro, mesmo».
A questão pode ser vista segundo duas perspectivas: a do lado menos adequado, o do tradicional «acho que...» e «porque sim»; e o lado das vantagens e benefícios no plano da clareza, fundamentado na legislação em vigor. Esta segunda perspectiva parece menos subjectiva e claramente mais racional. E é óbvio que – no plano da clareza e das vantagens – as abreviaturas exigem pontos. Quanto mais não seja para eliminar ambiguidades, leia-se «evitar que se interprete diferente do que pretendia veicular».
O autor daquela entrada, acima referida, subentende alicerçar-se em fontes de confiança. Porém, independentemente de tudo o resto, e da hipotética «reputação» de tais fontes, atentemos nos seguintes exemplos práticos:
1. Ao escrever «c.a.» estamos a abreviar a designação «corrente alternada». Eliminando os pontos pode ler-se «c» a multiplicar por «a», dado que o produto de dois factores expressos por letras não implica forçosamente o uso de ponto nem de cruz (x). E numa leitura apressada, o pequeno intervalo (que as normas determinam) entre o «a» e o «c» passaria despercebido.
A indicação «f.e.m.» é uma abreviatura de «força electromotriz». Mas, sem pontos, passa a poder ler-se como "f "multiplicado por "e" e por "m"».
2. Ao escrever 6.º, abrevia-se «sexto». Mas escrever 6º significa forçosamente «seis graus».
3. A escrita 8ª pode interpretar-se como «oito elevado a "a"».
4. Numa enumeração como esta:
100º (a água começa a ferver)
Será que se quer dizer «centésimo considerando: a água começa a ferver» ou será «100 graus: a água começa a ferver»?
Se já há tanta ambiguidade, para quê criar mais fontes da dita? Se o Acordo Ortográfico de 1990* suprime os pontos, rectifique-se essa gaffe (engano acidental e censurável, susceptível de manchar a reputação de quem tão mal assim se exprime).
Tendo considerado os aspectos práticos, as vantagens da clareza, o evitar de ambiguidades, passemos agora ao que está legislado e já normalizado a propósito:
O Decreto-Lei n.º 128/2010, de 3 de Dezembro, apõe pontos em todos os casos em que recorre a ordinais. Está disponível em linha e pode ser consultado aqui.
Toda a legislação anterior sobre a matéria, publicada entre nós, utiliza generosamente o ponto sempre que se refere a ordinais:
a) Decreto-Lei n.º 427/83, de 7 de Dezembro;
b) Decreto-Lei n.º 320/84, de 1 de Outubro;
c) Decreto-Lei n.º 238/94, de 7 de Dezembro;
d) Decreto -Lei n.º 224/2002, de 22 de Novembro.
[A pedido do autor, o presente texto não segue o AO90].
* N. E. – Ao contrário do que se diz no texto que desencadeou a controvérsia – «Dizer que é erro escrever "quarta" como "4ª"... é erro, mesmo» –, não é verdade que o «o próprio Acordo Ortográfico em vigor não [use] pontos nos cardinais». Com efeito, pelo menos, no texto que foi publicado em Portugal, em 1991, no Diário da República (cf. anexo à Resolução da Assembleia da República n.º 26/91), exibe-se sempre o ponto abreviativo na representação dos ordinais. Diga-se, de resto, que as normas ortográficas do português não abrangem a utilização do ponto abreviativo nem a de outros sinais de pontuação ou de auxílio à escrita. O Formulário Ortográfico de 1943 (em vigor no Brasil até 2009) e o chamado Acordo Ortográfico de 1945 (em vigor em Portugal até 2015) praticamente não definem as condições do uso do ponto de abreviação, apenas o referindo a propósito do caso em que coincide com o ponto que marca o fim de um período. O Acordo Ortográfico de 1990 (AO) também não apresenta nenhuma disposição sobre este ou outros sinais auxiliares da escrita; não existe, portanto, erro da parte do AO (ou da parte das normas que o precederam) nem razão para uma retificação, porque a norma ortográfica não se pronuncia sobre esta matéria. Devem, portanto, distinguir-se duas vertentes nesta discussão: por um lado, as normas ortográficas não definem preceitos sobre o uso do ponto abreviativo – e o AO não é exceção; por outro lado, o texto do AO, tal como foi publicado em 1991, no Diário da República português, apresenta pontos abreviativos na representação dos ordinais, numa prática que está há muito consagrada.
N. E. (atualização em 24/01/2019) – No Brasil, não se recomenda o ponto associado aos ordinais. O exemplo provavelmente mais ilustrativo deste preceito ocorre no Manual de Redação Oficial e Diplomática do Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores Brasileiro), na versão de 2016 (secção 2.4.3): «Não se deve fazer o uso, hoje obsoleto, de ponto entre o número e a vogal sobrescrita: escreva-se “12ª reunião”, não *12.ª reunião.» Agradece-se ao consulente Humberto Aparecido Santos (Rio de Janeiro, Brasil) a chamada de atenção para este aspeto. Importa no entanto a acentuar o que, para o Brasil, especificava a Base XVII (Sinais de Pontuação) do Formulário Ortográfico de 1943, sobre as abreviaturas. Aqui.