Entendo que o texto a seguir, que tirei de site da minha maior confiança**, se refere [ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa]. E preciso de admitir que concordo com eles: sempre revirei os olhos e ri sozinho da insistência do Ciberdúvidas de dizer que quarta só pode ser abreviado como 4.ª, e não como 4ª, inventando uma regra que não existe em nenhuma gramática e que não é seguida, pois regra não é, pelos dicionaristas, académicos, gramáticos. Agora que vi que o próprio texto do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa usa todos os ordinais sem pontos[1], senti-me na obrigação de apontar-vos o vosso erro, para que parem de disseminar inseguranças linguísticas baseadas no que é pura questão de estilo e preferência pessoal:
Em português, os números ordinais, como "primeira", "sexto", etc., podem ser escritos com uma combinação de algarismos e letras sobrescritas: 1ª, 6º, etc. Algumas fontes tipográficas inserem automaticamente um sublinhado à letra sobrescrita, o que é opcional.
Uma leitora aponta-nos para um blogue português supostamente dedicado a achar «erros de português» – já escrevemos aqui sobre o perigo desse tipo de gente: o prazer em achar erros é tamanho que começam a inventar erros que não existem, ou bem confundem estilo com gramática. O tal blogue aponta como "erro" abreviar "segunda" ou "sexto" como 2ª e 6º. E essa gente se leva a sério.
Segundo esse tipo de inventores de falsos erros, deveriam obrigatoriamente escrever-se "2.ª" e "6.º", com um pontinho. Porque, de acordo com a torpe lógica deles, o ponto seria obrigatório para marcar que se trata de uma abreviação.
Sim, é verdade que um ponto em geral marca a supressão de algo numa abreviação: "Il.mo" era a grafia tradicional da abreviatura de "Ilustríssimo", em que o pontinho ficaria no lugar de tudo aquilo que se suprimiu - nesse caso, "ustríssi". O primeiro furo na lógica de quem diz que "segunda" só pode ser abreviado como "2.ª" é que, nesse caso, o pontinho não estaria representando coisa alguma. Ademais, esses inventores de erros são, como sói ocorrer, incoerentes: se obrigatório fosse marcar com um ponto os ordinais, igualmente obrigatório seria usarem pontos em todas as siglas - como, com efeito, se escrevia até não muito atrás: O.N.U, D.V.D., etc. Mas, incoerentemente, os mesmos que, contrariando todos os bons dicionários e gramáticos, querem inventar uma obrigatoriedade de se escrever "1.ª", "aceitam" as grafias quase universais ONU, DVD, etc.
Como também sói ocorrer, esses blogueiros inventores de erros seguem uma regra "de português" que não existe em nem uma única gramática de português, em nenhum tratado da língua, e que – aí a ironia – contradiz o próprio Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Sim, porque não apenas nossos melhores gramáticos e a própria Academia Brasileira de Letras estampam "3ª edição", "4ª edição", "5ª edição", sem pontos, em suas capas – o próprio Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, instrumento oficial e legal regulador da ortografia da língua, assinado pelos representantes dos governos de todos os países lusófonos, foi inteiramente redigido com ordinais sem pontos – como se pode ver aqui, na versão original, assinada em 1990; aqui, na versão atualmente divulgada pela própria CPLP; ou aqui, no protocolo modificativo também assinado por todos os países lusófonos.
Em suma, o próprio Acordo Ortográfico em vigor não usa pontos nos cardinais.
De modo que dizer que escrever "quarta" como "4ª" é um erro de português não é sequer "ser mais realista que o rei". É erro, mesmo.
* subscritor deste texto enviado ao Ciberdúvidas, contestando o que aqui se tem recomendado quanto à obrigatoriedade do ponto nas abreviaturas, nelas incluídas nas dos numerais cardinais. Cf. Textos Relacionados, ao lado.
** o autor fez-nos chegar a informação onde retirara esta argumentação, sem antes ter atribuído a devida autoria. Duplamente lamentável: pelo logro que nos induziu e porque, por princípio, o Ciberdúvidas não se envolve em querelas com outros espaços sobre a língua portuguesa.
[1] N. E. (5/09/2016) – N. E. – Não é verdade que o «o próprio Acordo Ortográfico em vigor não [use] pontos nos cardinais». No texto que foi publicado em Portugal, em 1991, no Diário da República (cf. anexo à Resolução da Assembleia da República n.º 26/91), exibe-se sempre o ponto abreviativo na representação dos ordinais, conforme se pode confirmar pela imagem que aqui se junta.
Observe-se que as normas ortográficas do português não se pronunciam acerca da utilização do ponto abreviativo nem de outros sinais de pontuação ou de auxílio à escrita. O Formulário Ortográfico de 1943 (em vigor no Brasil até 2009) e o chamado Acordo Ortográfico de 1945 (em vigor em Portugal até 2015) praticamente não definem as condições do uso do ponto de abreviação, apenas o referindo a propósito do caso em que coincide com o ponto que marca o fim de um período. O Acordo Ortográfico de 1990 (AO) também não apresenta nenhuma disposição sobre este ou outros sinais auxiliares da escrita. Mas nada disto contraria o facto de a publicação do AO em 1991, no Diário da República (DR) português, apresentar pontos abreviativos na representação dos ordinais, numa prática há muito consagrada. Em suma, pelo menos, em Portugal, é necessário consultar o DR e não tirar conclusões apenas com base nas muitas versões do AO que se encontram na Internet e que não apresentam o sinal em causa.
[Sobre esta controvérsia, O ponto é ou não obrigatório para marcar uma abreviação?, ver ainda; O ponto nas reduções dos ordinais, na tradição do português europeu + Porquê o ponto nas abreviaturas – e já não nas siglas.]