Já se tornou um hábito o Diário de Notícias (DN) distribuir, nos meses de Verão, uma colecção de livros. São normalmente pequenos livros de bolso de bons autores. Já se tornou um hábito também essas edições terem, por vezes, pouca qualidade, quer do ponto de vista da obra de livro, quer sobretudo do cuidado posto na revisão dos textos. Este ano não foi excepção. É óbvio que os livros são gratuitos, mas isso não pode constituir atenuante. A cobrança de um valor simbólico adicionado ao jornal teria — parece-me — o mesmo efeito de captação de leitores na época estival. E uma parte da receita gerada por esse custo adicional aplicada no projecto editorial, e, designadamente, num bom revisor ou copidesque, garantiria uma edição de maior qualidade que poderia até perdurar para lá do efémero do Verão.
Não sei com exactidão como é efectuada tecnicamente a edição, mas parece-me que, em alguns casos, as obras seleccionadas, sobretudo as mais antigas, tomam por base uma edição impressa, recorrendo a um digitalizador e a um programa de OCR — Optical Character Recognition ou Reconhecimento Óptico de Caracteres — em que a partir da imagem ou mapa de bits se consegue obter o texto editável, pois só assim se compreendem algumas das gralhas que apresentam.
A colecção deste ano, chamada Biblioteca de Verão, compõe-se de 27 livros. É um projecto da QuidNovi, uma editora sobretudo vocacionada para a produção de livros e outros conteúdos para venda associada a jornais, sendo distribuída pelo DN e pelo JN – Jornal de Notícias. Iniciou-se em 17 de Julho e terminará em 31 de Agosto. O que se disse não é aplicável a todos os títulos saídos, nem será seguramente a todos que ainda estão por sair. Mas será por certo comum a alguns. Dos que já li, Cidade Proibida, de Eduardo Pitta, possivelmente por se tratar de um livro mais recente e ser efectuado a partir de um ficheiro de texto, é uma edição escorreita.
Ao contrário, o livro Cármen, de Prosper Mérimée (1803-1870), que serviu de argumento para Georges Bizet criar a ópera Cármen, uma das mais populares de todos os tempos, é um bom exemplo do que se disse. Ao longo das 77 páginas da novela, detectei uma quantidade apreciável de gralhas/erros grosseiros. Vejamos alguns exemplos agrupados por tipologias:
• Supressões — a vogal nasal ã não parece ter sido reconhecida, sendo pura e simplesmente suprimida, por exemplo, nas frases: «Não me cabia a mim a honra de ter descoberto to [sic] famoso local» (p. 6); «E notei que no [sic] tinha sotaque andaluz […]» (p. 8) ou «A combinaço [sic] “firlamui” é imediatamente compreendida por um cigano purista […]» (p. 77);
• Substituições — Há letras que são indevidamente substituídas por outras, por exemplo, nas frases: «As formas vagas e brancas que se contornam sabre [sic] os espíritos poéticos […]» (p. 19) — em que o o passou a a e, como tal, sobre passou a sabre; «Trazia urna [sic] saia vermelha muito curta […]» (p. 30) — em que o m de uma foi substituído por "rn", possivelmente pela proximidade gráfica das letras; ou ainda «– Dizem que sabes jogar a faca como o meIhor [sic] jaqué de Málaga» (p. 59) – em que o l de melhor foi substituído por um i maiúsculo, sendo aqui ainda mais evidente a proximidade gráfica de ambas as letras, mesmo que serifadas; ou ainda: «Enquanto novas, podem passar por agradáveis fealdades mas, desde que são mais [sic], tornam-se repugnantes» (p. 71) — em que a palavra mães foi substituída por mais;
• Acentuações — A acentuação de algumas palavras é igualmente um problema, a julgar pelas frases: «Não há duvida [sic]» (p. 11) ou «É preciso que um de nos [sic] vá a Gibraltar saber novas» (p. 54);
• Verbos — A utilização dos pronomes pessoais, enquanto partes integrantes dos verbos, revela-se um problema, como demonstram as frases: «[…] erguiam se à beira das escarpa […]» ou «[…] levantara se e aproximara se do cavalo […]» (p. 6), ou, inversamente, em «Depois de acender o charuto, escolhi-o melhor entre os que me restavam […]» (p. 8); o mesmo se passando com as particularidades de conjugação do verbo haver como, por exemplo, na frase: «[…] talvez saiba o que lhe hei de fazer» (p. 13) ou «Nasceu calli e “calli” há de morrer» (p. 68);
• Outros — A confusão entre o advérbio decerto e a preposição de com o pronome indefinido certo em: «– Quererá mandar dizer outra [missa] por uma pessoa que o ofendeu? – De certo, meu caro – repliquei-lhe […]» (p. 27).
Apesar de na ficha técnica não existir referência a nenhuma edição anterior e o nome da tradutora não parecer constar em anteriores edições da obra, levando-nos a pensar estarmos perante uma edição original e uma tradução de raiz, é-me difícil encontrar justificação para o tipo de gralhas/erros enunciados que não as dificuldades geradas pelos programas de OCR.
Parte destes casos, respigados aleatoriamente da novela, parece assim ficar a dever-se às dificuldades com a língua portuguesa demonstradas pelos programas de OCR, embora a maioria deles permita a configuração em português e a conexão a processadores de texto como o Word. Mas é óbvio que a maior ou menor proficiência dos programas de OCR não dispensa um cuidadoso trabalho de revisão do texto final, a fim de evitar casos aberrantes.
Seja ou não a montante um problema de tecnologia, este é, sem dúvida, pelo menos a jusante, um problema humano. Sejam quais forem as causas do mesmo, cuja origem aventamos — sublinho, aventamos — como possibilidade acima, as gralhas/erros estão lá. E a dupla DN/JN, quanto mais não seja pela importância histórica que ambos os títulos têm no panorama da comunicação social escrita em Portugal, não pode, sob nenhum pretexto e ainda que a responsabilidade editorial seja — parece-nos — atribuível à QuidNovi, associar-se ou distribuir livros com gralhas/erros como os que acima ficam transcritos.
Circunscrevemo-nos apenas à revisão do texto, deixando de lado a análise do livro enquanto objecto e a qualidade da tradução. Sobre uma e outra, porém, haveria também alguma coisa a dizer.
As colecções (de)Verão ter mais qualidade!
N.E. – (21/03/2017) Com as novas regras do Acordo Ortográfico de 1990*, tal como os nomes dos dias da semana e dos meses, os das estações do ano passaram a escrever-se com inicial minúscula. É o caso de verão.
*Vide b) do ponto 1 da Base XIX: Das Minúsculas e Maiúsculas:
«A letra minúscula inicial é usada:
a) Ordinariamente, em todos os vocábulos da língua nos usos correntes;
b) Nos nomes dos dias, meses, estações do ano: segunda-feira; outubro; primavera;
c) Nos bibliónimos/bibliônimos (após o primeiro elemento, que é com maiúscula, os demais vocábulos podem ser escritos com minúscula, salvo nos nomes próprios nele contidos, tudo em grifo): O Senhor do Paço de Ninães, O senhor do paço de Ninães, Menino de Engenho ou Menino de engenho, Árvore e Tambor ou Árvore e tambor;
d) Nos usos de fulano, sicrano, beltrano;
e) Nos pontos cardeais (mas não nas suas abreviaturas): norte, sul (mas: SW sudoeste);
f) Nos axiónimos/axiônimos e hagiónimos/hagiônimos (opcionalmente, neste caso, também com maiúscula):
senhor doutor Joaquim da Silva, bacharel Mário Abrantes, o cardeal Bembo;
santa Filomena (ou Santa Filomena);
g) Nos nomes que designam domínios do saber, cursos e disciplinas (opcionalmente, também com maiúscula):
português (ou Português), matemática (ou Matemática); línguas e literaturas modernas (ou Línguas e Literaturas Modernas).» Já Páscoa e restantes nomes de festividades continuam a escrever-se com maiúculas iniciais conforme a e) do 2.º parágrafo da mesma Base XIX: «A letra maiúscula inicial é usada:
a) Nos antropónimos/antropônimos, reais ou fictícios: Pedro Marques; Branca de Neve, D. Quixote;
b) Nos topónimos/topônimos, reais ou fictícios: Lisboa, Luanda, Maputo, Rio de Janeiro, Atlântida, Hespéria;
c) Nos nomes de seres antropomorfizados ou mitológicos: Adamastor; Neptuno/Netuno;
Outra alteração respeita às duplas consoantes, tendo-se, por isso, passado a grafar coleção – e já não colecção, como vigorava em Portugal com a norma ortográfica de 1945.