O medo contamina agora o in- inicial, que passa a en-. E ouve-se "endicar","empressões", "endivíduo", "enfelizmente", "envestigar"
Você tem medo ao i? Desculpe a pergunta. Mas, se for o caso, se você tiver mesmo medo ao i, anda bem acompanhado. Esse som está a desaparecer das nossas rádios, da nossa televisão. Sejamos claros: o futuro do nosso i não é risonho.
Tudo começou quando, há uns vinte anos, o e inicial de evidente, de exemplo, de herói, essa vogal átona que todos pronunciávamos como i, passou a soar, em bocas refinadas, como um ê. Soava chique, "êvidente", "hêrói", mas era uma hipercorrecção. É um conceito importante aqui. Por medo de errar, exagera-se naquilo que se supõe correcto. Afinal estava ali um e, não estava? Certo. A hipercorrecção, o pronunciar chique, é um grande motor nos idiomas. Para mais, um som "ê" naquele sítio (uma pré-tónica átona) era grande novidade: ele desaparecera há séculos do nosso português. Mas estava-se, também, no começo da confusão, que iria levar ao caos actual. Afine você o ouvido.
Quem se convenceu de que a pronúncia correcta era "êducar" (este acento não é tónico), "êxemplo", "hêrança", desenvolveu um temor por qualquer som i inicial, que considera erro. Passa-se então a dizer "êrregular" por irregular, "êsolado" por isolado. Não estou a inventar. Ouvimos na televisão «armas êlegais», «a solução êdial», «todas as hêpóteses», «este êdoso», «os estragos são êrrelevantes» (tudo na SIC), «de meia-êdade», «o estádio está êluminado» (na RTP), «jogo êlícito», «estas êmagens» (na TVI). Escutamos também "êrregularidades", "hêstórico", "êrreversível". E a publicidade fala-nos de «olhos êrritados», de «contacto êmediato».
A desordem entra em nova fase. O medo contamina agora o in- inicial, que passa a en-. E ouve-se "endicar", "empressões", "endivíduo", "enfelizmente", "envestigar". Um porta-voz dos bombeiros fala num "encêndio", enquanto um locutor nos convida para «um breve entervalo». A publicidade, essa, sugere-nos «cereais entegrais».
Chegado aqui, o falante entra em desorientação total. Agora, todo o som "i" ou "ê" inicial, nasalizado ou não, lhe soa suspeito. Foge duns para cair noutros. Caso receie menos o in-, dirá "invidente", "inresistível", "invitar" (por evitar), "infeito" (por efeito). São hoje frequentes um "insencialmente", um "inventualmente".
Num pânico, o falante inicia a fuga a todo e qualquer i ou in pré-tónico. E escutamos "localêdade", «jogos olêmpicos» (estes dois na TVI), "verêficar", "utêlizar", "depoêmento", "têtulos" (por títulos), «em prencípio». E a publicidade reserva-nos um charmoso "Vêsite-nos".
Por fim, o inaudito acontece: a própria conjunção e passa a "ê". Ouvimos «mais fina ê leve» (SIC, 26-8-07), «vale a pena ê recomendo» (SIC, 26-8-07), «ê livros, muitos livros», «edições artesanais ê limitadas». A publicidade, folgazã, vai até ao fim da linha: «Ê cá está!» (Euromilhões), «quinta, sexta ê sábado» (Intermarché), «pimenta… ê natas» (Caldos Knorr). Grave? Muito grave. Mas, num locutor, compreende-se. A pressão do directo e uma apertadíssima autovigilância levam os melhores ao desvario. Outro é o caso das vozes publicitárias. Bem timbradas, em sugestões de veludo, vão-nos aliciando para um mau idioma.
in Expresso, 29 de Setembro de 2007