mi-nis-tro est une affectation.
Leite de Vasconcelos, Dialectologia.
Um artigo do filólogo Jorge Daupiás (1885-1947), à volta da chamada pronúncia pseudo-erudita ou afectada. São os casos de ministro, de feminino, de militar, de vizinho ou de Filipe. Do livro Novas Recreações Filológicas (separata da revista A Língua Portuguesa, Lisboa, 1962/63).
Não é de hoje que data a influência da escrita sobre a pronúncia. Por via dela, vemos muito boa gente, mormente entre as pessoas chamadas cultas, fazer os maiores esforços para contrariar as tendências e a índole tradicional da língua, e conseguir, com maior ou menor êxito, estropiar algumas dúzias de palavras
Dá-se o caso, por exemplo, nos vocábulos, em i tónico precedido de sílaba que contém outro i: ministro, vizinho, etc. Qualquer sujeito que usa colarinho e gravata julgar-se-ia desonrado se não torcesse a boca toda para pronunciar mi-nis-tro; e a senhora que se preza de saber falar e lê romances, franceses, trava infindáveis conversas com a vi-zi-nha do lado, como ela lhe chama. E ambos, para tornarem bem audível esse i pretónico, dão-lhe duração igual à do i tónico. Ora isto é contrário às normas da pronúncia do português europeu, em que a maior quantidade silábica pertence à sílaba tónica.
Doutíssimas pessoas, mestres da língua até, incorrem nessa afectação talvez já sem darem por isso, ou julgando que assim se extremam do vulgo. Outros reputam regionalismo a pronúncia me-nis-tro, ve-zi-nho, declaram até ser ela a de Lisboa, e não a do Norte, onde se ouve, em sua opinião, mi-nis-tro e Di-nis, palavras que, assim proferidas, são, dizem eles, mais musicais.
Bastante me custa ter de discordar dessas opiniões, mas não se trata aqui de questão de gosto, de maior ou menor musicalidade, e sim do estudo de um fenómeno. Se as tendências normais da língua portuguesa são para dizer menistro, e até m'nistro, se quiserem, esse é o puro português, muito embora agrade ou desagrade ao ouvido de certas pessoas. O puro francês é ch'val, p'tit, principal'ment. Podem arguir que é muito mais eufónico, musical, ou o que lhe queiram chamar, fazer soar os ee nessas palavras; mas, dêem-lhe as voltas que lhe derem, o caso é que quem disser che-val, principa-le-ment, não falará puro francês.
Já tenho visto apelar para Gonçalves Viana, que toma como padrão da chamada pronúncia normal a que vigora entre Coimbra e Lisboa, e inferir dali que menistro é peculiar a essa região. Mas quem assim procede, parece não ter reparado que o abalizado foneticista, no que se refere ao caso me-nistro, ve-zi-nho, etc, exarou na Exposição da Pronúncia Normal (p. 76): "pronúncia que as ortografias arcaicas comprovam ser antiquíssima."
E tão antiga é, que já vinha do latim; exportaram-na os soldados e colonos romanos. Diz C. H. Grandgent1, na sua excelente Introdução ao Estudo do Latim Vulgar (a p. 127 da tradução italiana, Milão (1914): "I tendia a passar para e, por dissimilação, se havia um i na sílaba seguinte: dividere>devidere; divinus>devinus... ; finire>fenire... ; vicinus>vecinus." Eis por que dizem os Portugueses vezinho (embora se conserve a escrita vizinho), os Espanhóis vecino (Men. Pidal, 'Gram. Hist. Esp.' p. 113, ed. 1914), os Franceses voisin (Bourciez, 'Phonétique Française', p. 116, ed. 1914).
pseudo-eruditas
No período arcaico das línguas novilatinas, era fenómeno comum essa dissimilação. Encontrava-se no francês antigo senefier2 (como no português arcaico seneficar) ; devin-divin; fenir-finir; deviser-divisir (cf. Joseph Anglade, Gram. Anc. Fr., p. 30, ed. de 1918; Clédat, Gram. V. lang. Fr., p. 301, 3.°). Certas palavras recuperaram o primeiro i por via erudita, como divin, diviser; mas outras conservaram a dissimilação: devin, deviner, ennemi, Denis, petit, médecine, etc.
Dizer que tal fenómeno é pouco ou nada observado no Norte de Portugal não me parece exacto. Ainda não há muitos anos ouvi eu na Trofa um bando de crianças cantando esta quadra:
Se tu visses o que eu vi
lá na serra do Pilar,
um macaco sem orelhas
a fazer de melitar.
em que o e de melitar se percebia nitidamente. O que alguns julgam haver observado no Norte é, sem dúvida, que os cultos e semicultos pronunciavam, ou procuravam pronunciar, mi-nis-tro. Mas o mesmo se verifica em Lisboa.
Quanto ao povo, não sou só eu a afiançar que ele, de Norte a Sul, profere ve-zi-nho, me-li-tar, etc. Os que melhor estudaram a fonética da língua assim o observaram. Gonçalves Viana, tanto na Exposição da Pronúncia Normal como na Ortografia Nacional, não localizou o fenómeno só no centro do país. Eis o que diz este foneticista (Ortogr. Nac., pp. 101-103): "Isto prova quanto são pretensiosas e faltas de fundamento as pronúncias adoptadas nos nossos teatros, dividir... ministro, com i átono em vez de e surdo, em oposição com a pronúncia usual... de que o português apresenta numerosíssimos exemplos, como nenhuma outra língua românica... deturpação pseudo-erudita (a de mi-nis-tro), que só pode ser defendida por quem ignora, ou quem conhece mal, a língua portuguesa do continente, quer presente, quer anterior ao período actual. Felizmente… a influência perniciosa dos que, no teatro ou fora dele, vaidosamente pretendem emendar pronúncias populares, que são de séculos, ainda não conseguiu divulgar as suas exóticas maneiras de proferir os vocábulos, e é mais que provável que nunca o conseguirá."
O Sr. Dr. José Leite de Vasconcelos, que aliás é do Norte e estudou no Porto, escreve em Esquisse d'une dialectologie portugaise (p. 103): "Par dissimilation: vezinho (aussi arch.), menistro, inemigo (C'est la prononciation normale, et non mi-nis-tro, i-ni-mi-go, qui est une affectation)." Diz mais o mesmo mestre nos Opúsculos (vol. 1, p. 280): "Aqui em Lisboa é frequente ouvir dizer ê-roi (herói) e mi-nis-tro, porque assim se, diz no teatro de D. Maria, quando a pronúncia normal daquelas palavras é iroi e menistro. Foi a ortografia que levou os cómicos àqueles erros." O Sr. Dr. Leite de Vasconcelos, que estudou miudamente as linguagens arraianas, nelas observou igualmente a dissimilação ora apreciada, e notou, por exemplo, santefecado em Almedilha.
afectação desairosa"
Cândido de Figueiredo, que também não era lisboeta e sim beirão, mais de uma vez3 verberou a pronúncia mi-nis-tro. No capítulo que escreveu para o opúsculo de Henrique Lopes de Mendonça, "Parece mal", assim se exprimiu (pp. 56-57): "Sobretudo nas cidades, e entre gente que se supõe bem educada, é vulgar a maneira defeituosa com que se pronunciam palavras como estas: ministro, vizinho, etc. Nos teatros, nas salas, em toda a parte ouve-se pronunciar mi-nis-tro, vi-si-ta... Fi-li-pe. Não é pronúncia portuguesa e, pela sua afectação, impressiona mal os que sabem falar... Também os antigos diziam e escreviam vezinho... É esta a pronúncia normal e tradicional. O mais é afectação desairosa."
Se, fora da categoria de pessoas a que fazem referência os autores acima citados, há quem tenha ouvido a pronúncia mi-nis-tro, possível é que fosse a algum torna-viagem do Brasil. E, mesmo assim, não deixa de aparecer em terras de Santa Cruz a dissimilação i-i=e-i. Já me referi a este assunto na Revista de Filologia Portuguesa, de S. Paulo, n.º 3 (p. 253) e 10 (p. 57), e citei a-de-vi-nhar. Várias vezes falei no caso com Mário Barreto. Como o meu saudoso amigo era bastante surdo, não podia facilmente dar-se conta de certos pormenores de pronúncia dos seus patrícios, e duvidava que existisse no Brasil o fenómeno i-i=e-i. Convenci-o quanto a a-de-vi-nhar, que foi fácil pronunciar alto ao pé dele. Mais tarde, consegui descobrir em cartas que lhe mostrei, de comerciantes de pequenas terras de Minas, diminuir e dividir escritos: deminuir4 e devidir. Recordo-me haver visto, no elevador de um grande armazém de S. Paulo, um letreiro em que estava escrito: femenino5. No Rio de Janeiro, perto da Praça da Bandeira, há a Rua Felipe Camarão (chefe índio que se celebrizou na guerra contra os Holandeses, que foi até afidalgado e se chamava de dom). Tenho a cabal lembrança de que a chapa indicativa do nome da rua trazia escrito Felippe.
Concluindo, é preciso, quanto a mim, não deixar alastrar a pronúncia viciosa mi-nis-tro, vi-zinh-o, etc.6, porque, à conta do esforço que se faz para contrariar a pronúncia normal e espontânea, a afectação chega ao ponto de dar à vogal pretónica duração igual à da vogal tónica; ora isto, me parece, é de todo em todo oposto à índole do português europeu. O remédio afigura-se fácil à primeira vista: bastaria que o Ministério da Instrução Pública baixasse uma circular, com indicações precisas, aos estabelecimentos de ensino e às direcções dos teatros, para se emendar a mão, ou antes a língua. Mas... preocupar-se-á acaso o Ministério com a pureza do idioma? É provável que tenha mais graves cogitações.
2"la chasible de sarge vermeille senefioit la croix", Joinville (Petit de Juleville, Cron., p. 124).
3 Falar e escrever, I., p. 38: O que se não deve dizer, II, p. 119.
4 Que os filólogos reputam, aliás, melhor grafia que diminuir, como demissão, é melhor que dimissão.
5 Há em Lisboa, no Largo do Calvário, uma escola oficial cuja tabuleta traz em letras gordas: Sexo Femenino.
6 Nota marginal de J. D. – Fialho, troçava de ministro, visita. Cf. Actores e Autores, p. 17 V. Enciclop. s. v. alisboetar-se.
In Novas Recreações Filológicas (separata da revista A Língua Portuguesa)