As palavras «islamista» e «islamita» coexistem na imprensa portuguesa, como aqui já se deu nota no Ciberdúvidas, e por várias vezes. O jornalista Francisco Belard propõe-se «reduzir a confusão» no texto a seguir transcrito, com a devida vénia ao Expresso.
No Diário de Notícias de [28 de Julho de 1997], Mário Bettencourt Resendes, na sua coluna de «provedor dos leitores», reflecte sobre a palavra «islamita». Até que enfim, na imprensa portuguesa, vejo alguém questionar o vocábulo, frequente no “DN”, e o conceito que procura representar. Nesse diário, «islamitas» costuma designar «radicais», «extremistas» e «fundamentalistas» (islâmicos), variantes de uma terminologia aplicada a uma realidade complexa e em parte nova. Abrange ela os que preconizam interpretações literais da lei muçulmana (sharia), desde os menos agressivos até aos defensores da guerra contra infiéis e descrentes e, no limite, do terrorismo.
A questão, no “DN”, surge a propósito de um texto do jornalista Luís Naves sob o título «Massacre de islamitas na Mesquita Vermelha» (recente episódio em Islamabad). O leitor João Rodrigues dirigiu-se ao provedor, observando: «Mas que islamitas? Os que morreram? E os que atacaram não eram também islamitas?». De facto, nos nossos dicionários «islamita» é «muçulmano», mas no “DN” não quer dizer bem isso. Luís Naves respondeu ter usado o termo «para designar os radicais que estavam na Mesquita Vermelha. Em todos os jornais e agências, a palavra foi usada com o mesmo sentido. Pessoalmente, preferia fundamentalistas islâmicos, para evitar a confusão entre muçulmanos e islamitas (que, em língua portuguesa “DN”, são sinónimos). (...) tem sido usada essa palavra para designar os extremistas e radicais que (...) defendiam a instauração da sharia no Paquistão». O provedor do reconhece, com Luís Naves, que a terminologia em causa merece «considerações adicionais»,mas quanto a elas «tende a concordar com os reparos do leitor». Consultando duas enciclopédias e um dicionário, regista unanimidade na denominação de «islamita» como o que «professa a religião islâmica» (radical ou não). Repare-se que Luís Naves apontou a sinonímia entre «muçulmano» e «islamita».
Remetendo para o texto integral, que obviamente não reproduzo, ouso opinar. O “DN” dá azo a confusões ao ir buscar a palavra «islamita» (que estava em desuso enquanto sinónimo de «muçulmano» - substantivo e adjectivo -, forma correntíssima com o mesmo sentido que o adjectivo «islâmico»), para lhe dar a acepção nova de muçulmano radical, extremista, fanático ou até terrorista. Esta operação semântica pode ser legítima, mas politólogos e dicionaristas não a consagraram. Para esse efeito tem sido preferida noutras línguas, quer em jornais quer em textos científicos, a expressão que em português se traduz no neologismo «islamista» (forma adoptada no diário "Público").Quando Luís Naves alude a «todos os jornais e agências», tem a certeza de que não era «islamistas» a forma mais referida? Por outro lado, tenho dúvidas quando Mário Bettencourt Resendes escreve: «Na língua francesa,é comum associar-se ‘islamite’ a uma leitura radical do Islão (...) e que associa a religião a um projecto político (...)». Receio que da palavra citada pelo meu camarada e amigo tenha saltado o «s», pois a acepção que menciona corresponde, sim, ao francês «islamiste». De «islamite» procede, segundo José Pedro Machado, a nossa palavra «islamita». Em dicionários franceses até aos anos 70 não encontrei «islamiste» (hoje corrente em obras científicas e nos media) e neles «islamisme» equivalia à «doutrina do islão» (Lexis, 1975). Em dicionários portugueses, mesmo recentes, não encontro «islamista», e «islamita» continua a significar muçulmano. Em inglês ocorre já (julgo que desde os anos 90) «islamism» nesse novo sentido que o distingue de Islão (sendo este a religião muçulmana ou o território que domina,dar-al islam).
Assim, em textos políticos e jornalísticos, a tendência internacional é hoje a de chamar Islão (islam) à religião e «islamismo» à ideologia (ia dizer política, mas é político-religiosa,com as reservas que esta aglutinação suscita em contexto muçulmano) extremista ou fanática. Os termos «fundamentalismo» e «integrismo» aplicados ao Islão (como em inglês «Muslim fundamentalists», em francês «fondamentalistes islamiques» e em castelhano «integristas musulmanes») não satisfazem, pois são importações de conceitos do cristianismo, associados a interpretações protestantes (o fundamentalismo) ou católicas (o integrismo). Um muçulmano pacífico e zelosopode hesitarem criticar o fundamentalismo, pois o Alcorão representa a palavra de Deus ao Profeta e é o «fundamento» inalterável da fé; para se referir a fenómenos de extremismo político de matriz ou fachada religiosa preferirá falar de «fanatismo». Digamos que «islamismo» é um «ismo» do Islão, que pretende a adopção integral da sharia. Comporta, segundo Daniel Pipes, «um esforço para transformar o Islão, religião e civilização, numa ideologia» que exige «adesão completa à lei sagradado Islão» (outros preferem ver nele um «grupo de ideologias» que querem aplicar a lei muçulmana em toda a sua extensão, rejeitando a secularização nos Estados e instituições). Gustavo de Arístegui publicou um livro significativamente intitulado El Islamismo Contra elIslam (Ediciones B, 2004), e numa entrevista observou que «os próprios muçulmanos confundem islamismo e Islão.» O Diccionario de la Lengua Española (Real Academía Española/Espasa Calpe, 2001), embora faça ainda coincidir «islamismo» com islam e «islamita» com muçulmano, já regista «islamista» como «pertencente ou relativo ao integrismo muçulmano». Ou seja, todos os «islamistas» se reclamam do Islão, dizendo-se muçulmanos, mas nem todos os muçulmanos são «islamistas». «Islamita» na acepção tradicional é um termo antiquado (quase como «maometano», para não falar em palavras arcaizantes ou pejorativas como «agareno»,«sarraceno», etc.). Em vez de repescá-lo julgo preferível tomar de empréstimo o conceito consagrado desde os anos 80 e 90 por politólogos, historiadores e jornais de referência em francês, inglês e espanhol. Em Portugal dispomos do útil e muito bem informado estudo científico Islamismo e Multiculturalismo, de José Pedro Teixeira Fernandes (Almedina, 2006), que explica em pormenor (v. sobretudo págs. 5 a 50) as subtilezas dessas e de outras noções.
in caderno Actual do semanário português Expresso, de 4 de Agosto de 2007.