Em português nos desentendemos, é o que parece. Basta ver a polémica que por aí anda com as provas de aferição da dita língua. Têm erros, sim, e depois? Quem disse que isso importa? Alguns puristas, obviamente fanáticos. Aos aferidores importa é o que se afere e neste caso, dizem eles, afere-se a capacidade de entender um texto. Escrever «açado» em vez de «assado» é absolutamente secundário. Cada coisa de sua vez. Aliás, devia ser assim em todas as provas: alunos de Inglês deviam poder responder, por exemplo, em francês ou alemão, a provas que apenas envolvessem compreensão (será com cê de cedilha, esta?) dos textos propostos. Os professores passavam por cima dos erros ou da língua (salvo seja) e ião, perdão, iam directos ao assunto. À compreensão, claro está.
Mas como pode alguém compreender alguma coisa se nem escrever sabe?, dirão os tais insuportáveis puristas. Porque é assim mesmo. O cérebro, como todos sabem, divide-se em compartimentos: num está o entendimento, noutro a chata da ortografia. Misturá-los dá sempre mau resultado, achaques, dores de cabeça e coisas assim. Por isso, os doutos responsáveis por estas coisas facilitam a vida aos pobres jovens que assim contornam as dores, tormentosas, de usar os dois compartimentos cerebrais ao mesmo tempo. É uma medida humanitária, sabiam? Não se queixem, por isso, de ver textos de universitários onde acentos e vírgulas surjam desfocados numa ortografia horrorosa. É assim mesmo: eles sabem o que querem dizer, coitados, não sabem é escrevê-lo. Vai com o tempo.
O tempo, esse distúrbio cósmico... Calculem que há trinta ou quarenta anos era absoluta e rigorosamente inadmissível cometer erros de português em provas de História, Ciências, Geografia, Matemática ou até Desenho. Quem maltratasse a língua, em qualquer lugar ou prova, era devidamente penalizado. Agora não, e percebe-se. O ensino é uma espécie de repartição com gabinetes estanques. Num apreende-se o conteúdo, noutro a escrita. Calcula-se que no da escrita se possa ser totalmente imbecil a decifrar o conteúdo. Paciência, cada coisa a seu tempo que o cérebro não é de ferro. Basta ver, por exemplo, os correctores ortográficos dos computadores. Cegos ao que se lhe põe à frente, disparam correcções inenarráveis. Uma pequena e exemplar lista: Saddam Hussein seria, se o corrector mandasse, Saúdam Useis; Bill Clinton, Belo Cintos; Barack Obama, Barraco Abana; Tony Blair, Tons Balir; a Al-Qaeda seria Alheada; e Vladimir Putin seria Vladimiro Putinho ou Patim ou Pudim ou Piton, sendo esta última sugestão decerto aceite por muitos como a mais correcta. Tiger Woods seria Tiver Todos, Beyoncé seria Betone e as maracas passariam a maradas. Nota 20, claro, na escala olímpica dos incorrectores.
* in diário Público de 4 de Junho de 2007
** Jornalista, director adjunto do Público