1. As provas de aferição do 1.º e 2.º Ciclos, realizadas no passado dia 22 de Maio, têm, cada uma, duas partes: na primeira parte é visada a competência de leitura e os conhecimentos de gramática e na segunda parte pretende-se aferir a competência na composição textual.
Nem numa parte nem na outra, por razões diferentes, são dados instrumentos rigorosos de aferição da competência de escrita.
2. No documento publicado no sítio do Ministério da Educação, intitulado «Critérios Gerais de Classificação», lê-se o seguinte:
«4. A ambiguidade ou a ilegibilidade da resposta implica a atribuição do código 0.
5. Nos itens da 1.ª Parte, não se consideram, para além do exposto na descrição dos níveis e para efeito de atribuição de código, os erros de construção frásica, de grafia ou de uso de convenções gráficas.»
Faço notar que, nesta primeira parte, não são só os erros ortográficos que não são considerados, mas os erros de construção frásica. Nos erros de construção frásica incluem-se erros de regência, concordância, ordem dos constituintes, tempos verbais, determinação/quantificação, etc.
A justificação para a não consideração dos erros de escrita na 1.ª parte está fundada no facto de se pretender aferir a competência de leitura e conhecimento de gramática independentemente do desempenho na escrita.
A questão está em saber se essa aferição se pode fazer simplesmente ignorando os erros de escrita para efeitos de classificação.
Há várias maneiras de ponderar a questão.
Uma é ir ler os especialistas em psicolinguística e confirmar que a compreensão e produção linguística são actividades que empregam processos cognitivos similares: «Reading and spelling are closely associated skills and it is rare to find reading-disable children who are not even more handicapped in spelling.1» (M. Prior 1996 — Understanding Specific Llearning Difficulties, East Sussex, U.K., Psychology Press, Publishers.)
Outra maneira de avaliar a razoabilidade da operação (tentar aferir em separado leitura e escrita) é, simplesmente, pensar um pouco: se é lícito esperar que haja alunos com uma boa competência de leitura e com uma má competência de escrita, então aceita-se que o inverso também ocorra; ou seja, que haja alunos com uma boa competência de escrita, mas que não conseguem apreender o sentido global de um texto quando o lêem — o que é, no mínimo, bizarro.
Outra maneira, ainda, é ir ler as provas, em articulação com o texto dos «Critérios Gerais de Classificação». Na prova do 2.º Ciclo, é pedido aos alunos que transponham uma frase em discurso directo para discurso indirecto. No entanto, segundo os critérios gerais de classificação, o professor não deve considerar os erros de construção frásica. Pergunta-se como é que o aluno pode cumprir cabalmente o que é pedido, dando erros de colocação de palavras na frase ou erros de concordância.
Nesta mesma primeira parte, ainda, os alunos devem indicar, por exemplo, um adjectivo e um verbo derivado de coragem. Se o aluno escrever "coragoso" e "encoragar", o professor classificador deve dar a classificação total à resposta, dado que, conforme se diz nos critérios gerais, não estão a ser considerados os erros ortográficos.
3. Passamos à segunda parte, dedicada à elaboração de um texto escrito. Nos critérios de classificação apresenta-se uma lista que especifica o que se considera ser erro ortográfico. É erro ortográfico o erro de acentuação, o erro de translineação e a incorrecta utilização de maiúsculas e minúsculas.
Não estão arrolados nesta lista os erros que afectam a forma gráfica da palavra pela selecção incorrecta de grafemas ("geito", "análize", "bossula", por exemplo), nem os erros de morfologia verbal (na distinção entre "voo" e "voou"; "contasse" e "conta-se"), nem os erros de individualização de palavras ("apartir"; "porcausa"; "derrepente").
Mas, verdadeiramente, não se diz que estes erros não devem ser considerados. Eles simplesmente não aparecem listados. À enumeração (incompleta) apresentada, acrescenta-se isto: «entre outros».
Este facto deixa inequivocamente espaço para uma ponderação arbitrária da competência de escrita dos alunos na componente ortográfica mais grave, que é a que afecta a própria atestação e reconhecimento de palavras.
4. Deu-se como justificação para a clara redução do peso do desempenho ortográfico dos alunos nestas provas o facto de termos em mãos provas de aferição — e não provas de avaliação. Mas no texto dos critérios de classificação do Exame Nacional de Língua Portuguesa de 9.º Ano de 2006 — uma prova de avaliação — o que se diz é literalmente o mesmo:
«São erros ortográficos, entre outros 2, a:
- troca de acento grave por agudo, ou do til por circunflexo, etc.;
- incorrecta translineação de palavras;
- ausência de duplo hífen na translineação de palavras com hífen;
- incorrecta utilização de maiúscula e de minúscula.»
1 «A leitura e a ortografia são competências estreitamente associadas e é raro encontrar crianças inábeis na leitura que não apresentem ainda mais dificuldades na ortografia.»
2 O sublinhado é meu.