De acordo com a Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008, que aprova o Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, adoptado na V Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, realizada em São Tomé em 26 e 27 de Julho de 2004, e publicada em Diário da República, 1.ª série — n.º 145 — 29 de Julho de 2008, «no prazo limite de seis anos [...] a ortografia constante de novos actos, normas, orientações, documentos ou de bens referidos no número anterior [isto é, bens culturais] ou que venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou de qualquer outra forma de modificação, independentemente do seu suporte, deve conformar-se às disposições do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa» (Artigo 2.º).
Assim, segundo a legislação citada, todos os textos redigidos em língua portuguesa (literários ou não literários, anteriores ou posteriores a 2008) deverão respeitar, no prazo de seis anos, o conteúdo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (AO).
Entretanto, a Resolução do Conselho de Ministros n.º 8/2011 (Diário da República, 1.ª série — n.º 17 — 25 de Janeiro de 2011) veio determinar que «o Acordo Ortográfico é aplicável ao sistema educativo no ano lectivo de 2011-2012, bem como aos respectivos manuais escolares a adoptar para esse ano lectivo e seguintes».
Naturalmente que o bom senso deverá imperar nestas situações, e, como bem refere o linguista João Malaca Casteleiro (que participou nos trabalhos que conduziram ao actual AO), «as novas regras apenas interferem com os manuais e dicionários escolares, pois, para as restantes obras literárias, seis anos é um prazo suficiente para que as edições com a antiga ortografia se esgotem» (in Mensageiro de Bragança, 10 de Outubro de 2008).
Deste modo, os novos manuais propostos para os anos escolares referidos pela consulente respeitam integralmente a lei em vigor no que diz respeito à matéria em apreço.
Devo dizer que me parece lógico que assim seja, pois, do meu ponto de vista, não faz sentido estar a trabalhar com manuais que proponham duas grafias diferentes. Seria, nesse caso, e permita-me a prezada consulente a expressão, «pior a emenda que o soneto», já que, aí, sim, a confusão instalar-se-ia de uma forma que considero absolutamente desnecessária. Repare-se que o AO não interfere com o conteúdo dos textos, nem tão-pouco com a pronúncia das palavras. Aliás, é justamente por motivos de pronúncia que muitas das alterações foram propostas no quadro do actual AO: «a disparidade ortográfica só se pode resolver suprimindo da escrita as consoantes não articuladas, por uma questão de coerência, já que a pronúncia as ignora, e não tentando impor a sua grafia àqueles que há muito as não escrevem, justamente por elas não se pronunciarem» (Texto do AO, Conservação ou supressão das consoantes c, p, b, g, m e t em certas sequências consonânticas).
Por outro lado, e no que diz respeito mais concretamente à alteração da ortografia de textos literários, pelas mesmas razões já expostas, não me parece que exista qualquer violação, por assim dizer, do pensamento, da intenção ou da mensagem originais dos respectivos autores. Simplesmente foram eventualmente redigidos numa época em que se escrevia esta ou aquela palavra, desta ou daquela maneira. Não vejo, por exemplo, que a alteração da passagem «sete bispos a baptizaram, que eram como sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor» para «sete bispos a batizaram, que eram como sete sóis de ouro e prata nos degraus do altar-mor» (José Saramago, Memorial do Convento) possa ser motivo para começarmos todos a rasgar as vestes e a dizer que é uma vergonha o que se está a fazer à obra do Saramago e à língua portuguesa.
Aliás, não é o que se faz, há já tantos anos, por exemplo, com Os Lusíadas, ou com os autos de Gil Vicente? Penso mesmo que seria incompreensível trabalhar estas obras nas escolas, mantendo a ortografia original na íntegra: para além de ser um verdadeiro massacre visual, seria uma excelente forma de afastar ainda mais os nossos alunos dos escritores portugueses de referência, e, consequentemente, de elitizar, de forma arrogante e pouco compreensível, o ensino da literatura. Mesmo fora do contexto escolar, exceptuando uma minoria, quantas pessoas teriam paciência para — ou conseguiriam sequer — ler os textos de Gil Vicente, de Fernão Lopes, ou de Luís de Camões na sua grafia original? Há mesmo quem defenda — os mais puristas — que até a própria apresentação gráfica dos textos se deveria manter fiel à original. Imagine-se o que era ler a Copilacam de todalas obras de Gil Vicente, a qual se reparte em cinco liuros neste formato original? Em contexto escolar, um ano lectivo não chegava para se poder estudar o Auto da Índia, por exemplo; noutros contextos, qualquer leitor médio desistiria a meio do diálogo inicial entre a Ama e a Moça.
Mas não precisamos de ir tão longe. Atente-se, por exemplo, no seguinte excerto retirado da edição original de Os Maias, de Eça de Queirós:
«Affonso riu muito da phrase, e respondeu que aquellas razões eram excellentes — mas elle desejava habitar sob tectos tradiccionalmente seus; se eram necessarias obras, que se fizessem e largamente; e emquanto a lendas e agoiros, bastaria abrir de par em par as janellas e deixar entrar o sol».
Que eu saiba, praticamente nenhuma edição moderna da referida obra mantém esta configuração ortográfica. E haverá necessidade de o fazer? Se a adaptação ortográfica se pode revelar facilitadora para uma melhor compreensão do texto e mantém, simultaneamente, o conteúdo e a mensagem do autor intocáveis, por que razão válida se haveria de continuar a ler e a trabalhar Os Maias com esta redacção? Só, penso eu, por curiosidade histórica, para suporte ao estudo de alguns aspectos da história da língua, ou em contextos altamente especializados seria justificável fazê-lo.
Como refere o professor Malaca Casteleiro, em artigo já citado, «há pessoas que não se rendem às evidências e têm uma dificuldade enorme em se adaptar aos novos tempos, ficando presas a questões de pormenor». De facto, creio que não valerá a pena perdermos tempo e desgastarmo-nos com questões de pormenor, que, na verdade, apenas nos desviam o olhar e o pensamento do que realmente interessa. Não é com certeza na manutenção da consoante c que residirá o segredo para a solução dos sérios problemas com que, infelizmente, se confronta a língua portuguesa e o nosso sistema educativo actual, pois, tal como num espectáculo de magia, enquanto olhamos para o vazio, está a verdade a acontecer noutro lado qualquer.